Se você me acompanha por aqui, sabe que são os assuntos que me chamam para serem escritos. Há algum tempo venho gestando um artigo sobre o que tenho observado, trabalhado e refletido sobre o feminino. Sou mulher, psicóloga e estudiosa do desenvolvimento humano. E, hoje, é a partir da costuras dessas três perspectivas, em conjunto com a prática de 20 anos de psicoterapia e das trocas com gentes, que escrevo este texto que compartilho com você.
Em meus estudos, me debruço muito em leituras e investigações sobre o universo feminino e, nesse passeio, dei as mãos para uma das autoras que mais contribuiu para minha construção neste sentido, a psicóloga junguiana norte-americana, Clarissa Pinkola Estés. Aos 15 anos, li seu livro “Mulheres que Correm com Lobos”, no qual ela nos fala sobre a natureza instintiva da mulher e como esta foi sendo domesticada ao longo dos anos. Ela faz isso nos conduzindo por histórias antigas, pelos mitos e pelos contos, revelando também como podemos resgatar essa energia que nos é vital. Reli aos 20 e poucos anos, depois aos 30 e, novamente, aos 43. A cada vez, assim como quando cada mulher me escolhe para compartilhar sua história, mergulho mais e mais no sentido e nos sentimentos que envolvem a existência das mulheres, dos mais belos aos mais doloridos.
A busca por esse resgate da potência e da energia feminina, tão presente na obra de Clarissa, é percebida nos atendimentos que fiz e sigo fazendo como psicoterapeuta, Recebo muitas mulheres nessa jornada, numa procura por si. Elas chegam se sentindo esgotadas, cansadas, perdidas. Querem descobrir quem são, se olhar por dentro, (re)descobrir seus gostos, suas preferências, seus projetos, seus anseios. São mulheres que querem encontrar sua própria voz.
E por quê isso acontece de forma tão recorrente? Comecemos do começo – ou pelo menos, por um resumo dele.
Somos historicamente oprimidas e culturalmente cerceadas de nossa liberdade, seja dos nossos corpos, trabalhos, escolhas. Para se ter uma ideia, foi só em 1932 que conseguimos o direito ao voto no Brasil; até 1962, mulheres casadas não podiam trabalhar fora de casa. Foi na Constituição de 1988 que houve clara expressão da igualdade de deveres e de direitos entre homens e mulheres. Um passado não tão passado assim. O fato é que vivemos em uma sociedade patriarcal, na qual somos direcionadas a cumprir atividades reprodutivas e de cuidado e, portanto, educadas a servir, zelar, doar e se responsabilizar pelos outros – família, filhos, companheiro, casa, trabalho, qualquer pessoa que não nós mesmas.
“Amélia que era mulher de verdade…. Amélia não tinha a menor vaidade..”
Ai que saudade da Amélia, Canção de Nélson Gonçalves
Você já ouviu falar da economia do cuidado?
É o trabalho invisibilizado e sem rendimentos se trata de tarefas como “dar banho e fazer comida, faxinar a casa, comprar os alimentos, cuidar das roupas (lavar, estender e guardar), prevenir doenças com boa alimentação e higiene em casa e remediar quando alguém fica ou está doente, fazer café da manhã, almoço, lanches e jantar para os filhos, educar”. São as mulheres que, majoritariamente, realizam essas atividades e, no Brasil, gastam mais de 61 horas por semana nessas funções sem receber um salário. Só para ter uma ideia da dimensão: o esforço equivale a 11% do PIB, segundo a consultoria Think Olga.
Entretanto, essa educação nem sempre é explícita – como nos anos 50, em que os meios de comunicação mostravam a mulher em situações de subordinação, ou as aulas de etiqueta, nas quais as mulheres de classe média e alta aprendiam regras sobre como cuidar da casa e da família, como receber visitas e como agradar o marido. Essa construção de valores tem raízes profundas nas diversas atividades e nos modos de vida contemporâneos.
Por exemplo, por meio das “fórmulas mágicas” de organização da casa, do tempo, da educação dos filhos, ou do checklist com mil e uma maneiras de enlouquecer seu homem na cama, de como ser mais produtiva e criativa no trabalho, e por aí vai. A consequência são jornadas exaustivas e uma enorme sobrecarga física, mental e emocional por que, afinal, “eu tenho que dar conta de tudo”.
A quadrinista francesa Emma criou uma série de tirinhas para mostrar como a responsabilização da mulher pelas tarefas de casa gera o “mental load”, ou seja, uma grande carga mental. O objetivo é evidenciar que, mesmo que homens realizem algumas das atividades domésticas, é a mulher quem deve coordenar, pedir ajuda e lembrar do que precisa ser feito.
Sem contar que existe ainda uma romantização desse papel multitarefas, colocando a sobrecarga como um superpoder da mulher, quando, na verdade, o acúmulo de funções provoca uma avalanche de problemas, vivenciados em diferentes níveis dependendo, especialmente, das intersecções de raça e classe social. Num outro momento escreverei sobre esse tema da interseccionalidade, fundamental para a nossa compreensão das diferenças vividas.
E a mulher de verdade? Eu, você e tantas outras? As mulheres de carne e osso? Onde estamos? Como nos encontramos?
A vida cotidiana vai distanciando a mulher se si mesma, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, a lança para dentro de si, com a obrigação de encontrar seu propósito, de alegrar-se com a vida, de valorizar o que tem. Minhas pacientes são mulheres que sentem-se realizadas em alguma dimensão: seja no trabalho, no relacionamento, na família, na profissão, mas percebem que “tem alguma coisa fora do lugar”, algo que “não se encaixa”, algo que as “impede de seguir”, de ser diferente, de ser mais elas mesmas. Ao aprofundar minha observação e minha escuta, percebo que experienciam o conflito da dor e delícia de ser o que são.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”
Dom de iludir, Canção de Caetano Veloso
Por conta de uma sociedade que nos ensina a dar e se doar aos outros, pouco ou nada aprendemos a olhar e cuidar de nós mesmas, o que vai marcando cada uma de um jeito, de tal forma que não sabemos se fazemos o que fazemos porque amamos, porque nos identificamos, porque desejamos ou ‘porque sim”. Esse modelo, então, ergue duras barreiras para as mulheres transporem, por exemplo a invalidação das próprias emoções, a dificuldade de dizer “não”, o medo de ser julgada e a falta de autoconfiança. Esse misto de sentimentos e o barulho das conversas internas com as vozes dos outros nos mantêm em constante estado de alerta e tensão, impedindo de simplesmente nos darmos ao direito de pausar, respirar, relaxar.
Em suas falas durante os atendimentos, as mulheres trazem um incômodo, um sofrimento, uma angústia, muitas vezes ainda sem nome e, ao caminharmos juntas pelas suas histórias, sentimentos, sensações invariavelmente chegamos à questão do prazer, ao desafio em reconhecer o que desperta seu real bem-viver. Como se perceber em situação de alegria? Como gozar de um momento, com toda a presença e a intensidade que desejo, sem me sentir culpada?
Essa escassez de gozo, no sentido mais amplo da palavra, é muito enraizada, a tal ponto que chegamos a não ter consciência disso diante de uma lista de tarefas que nos espera. E quando a consciência surge, por vezes, é alcançada pela sutileza das sensações, das percepções e dos sentimentos, e não pela razão ou pela lógica. Neste sentido, exploro o pensamento de Wilhelm Reich, psicanalista alemão, que já dizia que a função do orgasmo é, além do prazer, representar a possibilidade de expansão e de entrega na vida.
Mas, mesmo 70 anos depois da publicação do “O segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir, e passados 60 anos desde a pílula anticoncepcional, nós mulheres ainda estamos distantes do poder de gozar a própria vida, de se alegrar com os diversos contentamentos, seja através do próprio corpo (tocado por si própria, por outros ou por experiências outras), pelo lazer (gozar uma gargalhada boa!), pelo trabalho (realização profissional, felicidade pelo que faz e por ser boa naquilo que faz), pelo afeto ou por uma “simples” e deliciosa taça de vinho.
Quando Simone de Beauvoir escreve seu célebre livro citado acima, ela aponta a mulher enquanto sujeito de segunda classe, hierarquicamente menos que o homem, e escancara o que há muito as mulheres já sentiam, assujeitadas da própria subjetividade nas esferas social, sexual, psicológica e política, mas que não sabiam nomear – e muito menos sabiam que era possível sentir esses sentimentos.
Meu trabalho, portanto, é um convite! O convite de olhar para as dores de ser quem se é, de validar seus sentimentos e sensações para, então, poder mergulhar nas entranhas de descobrir todas as delícias de ser quem se é. Enxergando mais nitidamente as potências, as sombras, a alma. É um convite sem data marcada, sem mando, sem regra. Com fluidez para se encontrar e encontrar a si.
La que Sabé – O chamado da nossa alma, da sábia interior
( Lá que Sabé é a Sábia que habita o interior de todas nós, que reconhece e espera o despertar da Mulher Selvagem)
Atendendo mulheres há 20 anos e, ouvindo suas histórias, identifico um fio comum a todas: há um sussurro interno para a psicoterapia. É como se a mulher sábia que habita em nós, La que sabé, estivesse ali, convidando para que façam o caminho de volta, retornem para a própria voz e suas próprias cores. La que sabé parece dizer para que elas caminhem ao encontro da sua mais genuína intimidade, para uma verdadeira reconexão, acolhimento e amor a si mesma. Por vezes, chegam à terapia e nem sabem ao certo o que as trouxe, mas carregam uma ânsia por se sentirem vivas, apaixonadas, por resgatarem sua força potente de criatividade, para que, inteiras e conectadas, possam explorar o mundo e estar no mundo.
Nesse contexto, vejo meu trabalho como o de uma tecelã que vai sentindo as meadas que compõem cada mulher. Observo suas tonalidades, compreendendo os nós, os laços para, juntas, olharmos as tramas tecidas ao longo do tempo. Juntas, em um projeto que não tem predefinição ou caminho traçado, descobrimos se os fios precisam ser ressignificados, reinventados ou deixados para trás.
Nesse percurso de se reconectar com sua própria voz, vai se reconstruindo uma narrativa dos sentimentos, da história de vida. Nesse caminhar, percebe-se que certos modos de ser já não cabem mais e é preciso desprender a pele, trocar a pelagem, para dar espaço ao novo. É preciso experimentar. Encontrar seu próprio brilho, sua própria luz e cuidar dela, zelar por ela, de tal forma que a dança da vida entre o mundo interno e o mundo externo entrem num compasso de troca, de lucidez e de mais harmonia. Afinal, viver é afinar o instrumento, de dentro pra fora e de fora para dentro.
Convido você a convidar outras mulheres a experimentar essa jornada de silenciar os afazeres da vida vida cotidiana para ouvir a voz mais íntima, pois, como nos diz Clarissa “Em um dia distante, quando chegarmos às portas do paraíso, posso lhe garantir que ninguém vai perguntar se limpamos bem as rachaduras na calçada!”
(A Ciranda das Mulheres Sábias, p.9).
Você se identificou com essa reflexão? Compartilha de algum dos sentimentos que apresentei sobre ser mulher no mundo contemporâneo? Então, vamos conversar. Conte comigo para te acompanhar na costura do seu feminino, para fazê-lo um bordado mais colorido, potente e o mais importante: seu.
Até breve!
Abraços,
Carol Freire.