Estamos há 15 meses vivendo sob uma pandemia sanitária séria e que teve impactos dos mais diversos na vida de todos nós. Cada um de um tanto, cada um de um jeito, cada um com sua singularidade. No Brasil, são mais de 500 mil mortes, taxa recorde de desemprego e perda de renda entre os trabalhadores. Estamos em luto, com medo por nós e por aqueles que amamos. O sentimento é de realidade suspensa, um cenário de incertezas.
“Não estamos no curso normal das coisas… Ando muito cheio de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina. Estou sem eternidades.”
(Manoel de Barros – Os deslimites das palavras)
Enquanto adultos estão se sentindo frustrados, perdidos em meio a boletos, sonhos, receios, as crianças estão circulando no meio de nós, sacando que tem algo de errado, sem poder contar com a segurança dos mais experientes, que sempre se mostraram astutos e firmes, como bons comandantes da tropa. As escolas fechadas ou com modelo híbrido, intercalando o presencial e o virtual, revirou a educação infantil, já bastante carente de atenção no Brasil, e também as dinâmicas familiares.
“Devo me sentar com meu filho(a) para estudar?” “Devemos ser flexíveis e não cobrá-lo tanto?” “Como será o futuro do aprendizado?” Essas são dúvidas que tenho ouvido com cuidado e com frequência das famílias que acompanho e dos responsáveis que tenho contato. Mas, a proposta aqui não é respondê-las, afinal, são muitas possibilidades diante de um contexto complexo. Meu objetivo neste artigo é compartilhar com vocês minhas reflexões sobre o tema para pensarmos juntos.
Vamos comigo?
Antes de mais nada, acredito que é preciso tirar o pé do acelerador da vida louca e frenética à qual estávamos habituados. Assim, poderemos sentir e observar o que estamos atravessando e, então, vislumbrar saídas que antes não nos eram perceptíveis.
“Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.”
(Manoel de Barros)
Começo apresentando a vocês minhas compreensões acerca do desenvolvimento infantil, a partir de uma discussão que fiz lá no meu mestrado, em 2003, sobre o SER CRIANÇA. Se quiser checar o material, é só clicar aqui.
A criança o é hoje, no presente, não é apenas um vir a ser, uma possibilidade ou um repositório para um futuro, assim, devemos olhar para a criança como ser em desenvolvimento, com suas potencialidades, características e nuances no agora, no hoje. É no fazer, no viver, na experiência deste momento que a criança se constrói como humano, como ser em desenvolvimento. Criança é movimento.
É preciso lembrar, então, que as crianças JÁ SÃO, e que assim, sentem, se emocionam, aprendem, se interessam e se envolvem com o mundo. Repare bem e você verá as belezas, as descobertas, as invenções e o desabrochar de cada ideia, de cada nova habilidade e de questionamentos incríveis que as crianças se permitem fazer. Ah, como me encantam!
Entretanto, o “aqui e agora” de hoje está diferente. Não estamos no curso normal das coisas, mas, sim, em grande “entre”: entre o que conhecíamos e o que não conhecemos. A pandemia mudou completamente nossa formas de nos relacionarmos com os outros, com o mundo e com nós mesmos, e não é diferente com as crianças.
Elas não podem brincar livremente, abraçar os amigos e queridos, subir em árvores, dar aquela lambuzada de sorvete cremoso e tampouco se aninhar no colo dos amigos nas brincadeiras. É uma diversão diferente, uma escola diferente, uma vida diferente: assustada, asséptica, sem toque, com máscara, muito álcool em gel e uma distância física que chega a ser infinita que dói.
É momento para um convite, para uma reflexão do que queremos para nossas crianças e do mundo que queremos para todos nós. As nossas velhas fitas métricas, nossas velhas balanças, velhos instrumentos de aferição e controle das coisas não permitem mais prever para onde vamos. Então, talvez seja uma oportunidade para revermos o destino, reajustarmos as rotas, inventarmos novos instrumentos de navegação.
“A verdadeira educação é aquela que vai ao encontro da criança para realizar a sua libertação”
(Maria Montessori)
Trazendo nossa conversa para o recorte da educação, me pauto em grandes autores da área e da infância para novamente te convidar a refletir: o que é educação para você? O que você deseja para o seu/sua filho(a) com a educação? Uma educação que liberta, que abre o coração e as ideias para pensar, sentir, respirar e olhar para o mundo no rumo do bem comum? Uma educação conteudista, descolada do mundo, com foco no futuro, na profissão, na competição do mundo adulto?
Pare um pouco aqui. Deixem essas questões reverberarem dentro de você.
A resposta a essa pergunta é a chave central que dirá a você qual caminho seguir com seu/sua filho(a). Ninguém pode responder por você, mas posso ajudá-lo a pensar sobre isso. A educação tradicional tal qual nos tem sido dada desde o século XIX até os dias de hoje nos trouxe conteúdo, fórmulas, regras e normas descoladas da nossa vida cotidiana, quer ver? Vamos lá.
Nós usamos a norma culta da língua portuguesa em que contexto? Em casa? No trabalho? Os meios de comunicação falam cada vez mais de forma corriqueira, por outro lado, os artigos científicos falam suas línguas próprias, que tampouco nos conectam ao conhecimento (seja o psicologuês, o mediquês, advoguês e por aí vai). A matemática, física e química ensinadas não nos ajudam a fazer um bolo, trocar pneu, trocar o chuveiro de casa, a cuidar do orçamento doméstico. Já a biologia e as ciências não nos ensinaram sobre o fato de vivermos num planeta, de recursos finitos, da nossa influência humana sobre eles. Sabemos dos biomas, dos climas, dos planetas, mas não aprendemos como funciona “tudojuntoemisturado”.
Atenção, não estou aqui dizendo que a escola e seus ensinamentos não são importantes! Mas faço estas afirmações para provocar uma reflexão necessária que o momento nos convoca a pensar. Estou aqui trazendo a pergunta em torno de qual educação estamos falando e o que queremos que ela ofereça para nossas crianças.
No senso prático, considerando as muitas dúvidas que comentei que os pais me trazem sobre como lidar com o aprendizado dos filhos e filhas em meio a este contexto, acredito que direcionamentos mais profundos devam respeitar as singularidades de cada família, mas, de forma geral, oriento:
- Juntos somos mais: na lógica da educação conteudista, algumas escolas têm mandado muitas lições de casa por dia. Procure participar do conselho da escola e discutam juntos uma alternativa mais rica às crianças, já que algumas têm experienciado estresse, ansiedade e irritabilidade por excesso de cobrança escolar.
- Hora de rever o que é importante: veja o material enviado e procure definir um tempo de tarefas escolares e um tempo livre – este de preferência longe das telas, próximo à natureza, à criatividade e às emoções.
- Menos é mais: para as crianças que estão em muitas atividades extraescolares, oriento para que reveja se, de fato, todas são importantes neste momento. Colocá-las em uma corrida maluca em tempos delicados como estes pode não ser saudável: pausar o curso de línguas ou de programação não será tão grave.
- Diálogo é a chave: sempre vou defender o diálogo franco e acolhedor. Esta é a ferramenta mais valiosa para toda a família e para um desenvolvimento seguro e potente das crianças. Converse com seu/sua filho(a), procure entender como ele ou ela está se sentindo com a rotina escolar e com o aprendizado, para que seja possível ajustar o ritmo às necessidades.
Mais do que nunca, ‘não é hora de ser supermãe ou superpai’
Posto o tema educação em pauta – em xeque-, agora, parto para a perspectiva dos pais, especialmente neste emaranhado de dúvidas. Como sabem, não acredito que seja benéfico nem para as crianças e nem para os pais essa ideia de serem super-heróis/heroínas, pelo simples fato de que somos humanos e nos sentimos frustrados, realizados, tristes, alegres, com raiva, com medo e todos os sentimentos que essa vivência aqui, neste mundo, nos traz. É importante para as crianças saberem disso, pois é essa clareza que dará a elas a segurança básica, o sentimento de pertença, mostrando que também podem acolher toda sua paleta de sentimentos e de emoções, ao perceberem que os adultos também o experienciam e o respeitam.
Isso porque os pequenos perderam as aulas presenciais, o contato social e as trocas com outras crianças. Alguns perderam toda a escola, outros foram para o modelo remoto ao mesmo tempo em que os pais também trabalham de casa. No entanto, a presença física não significa, necessariamente, companhia e brincadeira com as crianças. São muitos sentimentos que certamente os atravessam. Além disso, a rede de cuidado não pode mais ser acionada, por conta da possibilidade de contaminação. Assim, o cenário são famílias tendo que equilibrar todos os pratos, juntos, buscando manter a vida funcionando “normal”, num mundo que não está nada normal.
Quando digo para que haja permissão da vulnerabilidade e do sentir, digo com base em pesquisas que mostram o aumento de casos de burnout parental. No estudo de duas psicólogas belgas, Isabelle Roskam e Moïra Mikolajczak, da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, é discutido o burnout parental e o quanto a pandemia COVID-19 tirou a rede de suporte dos pais, sejam as redes de familiares, sejam as redes de suporte sociais, de educação e de assistência.
O burnout aparece justamente quando os fatores de proteção ou de suporte são insuficientes frente aos desafios e fatores estressores, levando a um desequilíbrio na balança da vida das pessoas, um esgotamento físico, psíquico e social. Conhecemos o conceito quando aplicado ao mundo do trabalho, mas esse é um sentimento experienciado por muitas mães e pais neste momento da pandemia, pois além das questões ‘extracasa/família’, as crianças estão 100% do tempo sob seus cuidados.
É importante, no entanto, não trazermos um olhar medicalizante sobre o tema, pois não aponto aqui esse fenômeno como patológico, mas como uma experiência que tem sido vivida e relatada por muitos pais, neste momento mundial de perdas das certezas, dos trabalhos, das seguranças. E, portanto, precisamos entender que o esgotamento é experienciado por cada um de um jeito, mas que é reflexo de um mundo que tenta manter a mesma lógica de funcionamento num momento em que essa lógica não nos serve, não nos cabe, e nos assusta.
Reforço que este artigo não tem por objetivo colocar todos no mesmo barco – até porque vocês sabem que não acredito nisso. Estamos experienciando uma pandemia, mas tem gente que tem barco, outros têm canoa, outros têm iate, outros seguem com bóias, com colete salva-vidas e outros com nada…. Uns sabem nadar e outros nem isso. Essa linha daria um outro artigo, não é mesmo?
Meu convite aqui é para que você, mãe e pai, se reconheça como alguém que também está passando por essa pandemia, por esse turbilhão e, assim, possa tirar sua capa de invencível para assumir as suas possibilidades concretas e seus sentimentos mais genuínos.
Se está difícil seguir com as regras antigas, se permita rever. Se o funcionamento da rotina da casa precisa ser diferente, convide as crianças para participarem da nova organização. Acredite, todos saem ganhando, afinal, no mundo ou em casa, vivemos em coletivo.
Se cansar e quiser chorar, deixe vir, sem amarras. Somos humanos e a humanidade é que nos coloca em perspectiva, em lugar de cuidado. As lições de casa vão passar, tudo bem se as notas não forem as melhores. As crianças vão aprender a ler, vão aprender as quatro operações, vão aprender sobre o mundo e as coisas em longas conversas de família, na rotina da casa, no olhar para a humanidade dos pais.
Como foram essas reflexões para você? O que elas te despertaram? Espero ter contribuído para que você possa se acolher e se permitir descobrir novas possibilidades e, já sabe, se quiser conversar ou sentir que precisa de um espaço, conte comigo! É só entrar em contato aqui.
Abraços,
Carol Freire