Novos valores estão emergindo em nossa sociedade. Pautas como sustentabilidade, ética, transparência, diversidade e igualdade estão sendo debatidas com maior ânimo, em contraste com o cenário extremamente desafiador que enfrentamos. Não à toa, vemos artistas, intelectuais e atletas se pronunciando cada vez mais sobre essas temáticas. O acesso à informação e a amplificação de ideias pelas redes sociais permitem que movimentos se organizem e se fortaleçam para questionar o status quo e promover mudanças em nossas visões de mundo – e do outro.
Diante disso, esse novo texto que trago hoje nasce de uma observação atenta ao mundo que está à nossa volta, à clínica e às pessoas que me procuram. Isso porque, ao longo dos anos, enquanto psicóloga e psicoterapeuta, tenho recebido pessoas com diversas histórias e necessidades, mas um tema tem sido mais presente nos últimos tempos: como romper com modos machistas de ser?
São homens e mulheres com idades variadas, dos 20 aos 60 anos, que estão em busca de se libertar de comportamentos, de sentimentos, de emoções, de reações que os colocam como objetos de posse de outro, seja nas relações afetivas, seja no mundo do trabalho ou no universo familiar.
A partir dessa pergunta recorrente, resolvi tecer em palavras um pouco sobre minhas reflexões e meus estudos relacionados ao feminismo, ao cuidado e a uma sociedade mais justa, igualitária e acolhedora. Afinal, quando falamos sobre superar modelos machistas, estamos falando de direitos e espaços equânimes.
O machismo é uma conduta opressiva de gênero baseada na ideia de superioridade masculina em aspectos diversos, como no campo físico, intelectual e social. Esse comportamento se origina de um sistema social patriarcal, o qual reserva o protagonismo ao homem, que ocupa, portanto, posições de autoridade, de dominância e de privilégio em estruturas públicas e privadas. Este é um processo histórico, de séculos que, ainda hoje, se mantém predominante no Brasil.
No enfrentamento ao machismo está o feminismo, um movimento filosófico, político e social que luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres e pela liberdade e empoderamento feminino diante das determinações normativas de gênero.
“É uma luta pela ressignificação do papel da mulher na sociedade e pela sua emancipação e autonomia”
Iara Beleli, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, para o UOL.
Para se ter uma ideia de como esta atuação é importante, podemos olhar para alguns anos atrás. Foi em 1932 que o voto feminino se tornou lei por aqui. Até 1962, mulheres casadas só podiam trabalhar se o marido permitisse. E apenas em 1988, em nossa Constituição mais recente, ficou estabelecida a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres.
Na história da nossa sociedade ocidental, observamos o machismo e a misoginia como aspectos naturalizados não só no campo da vida privada, mas também nas práticas cotidianas e científicas, perpassando anos a fio e reforçando esse modo de ser como o modo de ser próprio da humanidade.
Este texto, portanto, é um convite ou alerta para temas existenciais importantes, tanto no campo da vivência pessoal, como da coletividade a qual pertencemos.
“Existirmos: a que será que se destina?” – (Caetano Veloso)
Voltando às minhas experiências, na clínica e na jornada de vida, não pense que o tema do machismo se apresenta sempre de forma clara e explícita, quando estou diante dos meus pacientes e das pessoas com as quais converso. Pelo contrário, muitas vezes, é observado em uma escuta atenta e cuidadosa de suas narrativas: ao falar de si e dos sentimentos, cada um vai entrando num universo emaranhado de sentidos, de teceduras complexas, de suas histórias e dos caminhos do seu modo de ser.
As mulheres têm buscado rever seu lugar no mundo, seus sonhos, seus desejos, seus projetos próprios e suas várias formas de ser e estar. Os homens, por sua vez, têm sentido necessidade de acolher sua dimensão afetiva e sensível, em um mundo que lhes cobra performance, objetividade e racionalidade a todo momento.
Isso porque homens e mulheres são ensinados, desde a infância, a se comportarem de formas determinadas pelo seu gênero. Mulheres brincam de boneca, cuidam da casa, enquanto homens são direcionados a se tornarem provedores, assertivos, sem a menor possibilidade de serem afetados pelas emoções.
Mas e se ao invés de haver uma cisão entre quem é e faz o que, pudéssemos pensar em uma sociedade em que homens e mulheres cooperam, compartilham e se cuidam mutuamente?
“No cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir” – (Leonardo Boff)
Ao trazer essa frase, Boff nos convida a olhar para nossa civilização que agoniza num modo de vida impessoal, objetificado, mercadológico, no qual todos somos “coisas” a serem consumidas uns pelos outros. A ideia de que somos de posse do outro.
Por meio do cuidar é que nos manifestamos humanos. É esse comportamento que evidencia nossa condição enquanto seres sociais, pensantes e com capacidade de nos interessarmos, nos preocuparmos, refletirmos e nos responsabilizarmos por nós e por todos os que estão com a gente.
O cuidado e a conexão humana são a materialidade do processo de humanização de todos nós. Assim, quando falamos do desejo de relações mais afinadas com nossa humanidade, com nós mesmos, com a dimensão do humano, relacional e conectado, estamos falando da importância do cuidado. E é nessa linha que costuro a questão do feminismo.
“O feminismo é para todo mundo” – (bell hooks)
A intersecção entre esses temas se faz ao assumirmos o cuidado como nossa tarefa mais humana, enquanto o feminismo é o convite para fazermos isso de maneira mais efetiva e transformadora. O cuidado, aqui, não se trata de trabalho, uma lista de tarefas, mas, sim, de um propósito de acolhimento: crianças sendo educadas para trilhar um caminho de defesa da igualdade de direitos; homens que desejam romper com o machismo estrutural, mas que encaram retaliações e críticas de seus pares; mulheres que vivenciam outras experiências de vida devido à sua raça ou classe social.
O feminismo é para todo mundo, porque todos podemos contribuir para aprender e acolher diferentes realidades e transformar violências e exclusão em uma vitória coletiva.
Quando bell hooks (no diminutivo mesmo, porque ela acredita que suas ideias devam ser mais importantes que seu nome) nos provoca em seu livro “O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras” com essa fala, ela chacoalha todas as estruturas.
Ela propõe, de forma muito acertada, ao meu ver, que o feminismo deve ser abraçado por pessoas de todos os gêneros, idades, classes, para que a mudança seja sentida, refletida em nossas ações nos espaços públicos e privados. Isso é cuidar: dosar a dureza com a suavidade, sem perder a esperança, nos levando a compreender os desafios em que vivemos, nos convidando a termos ousadia, e a unirmos homens e mulheres rumo a uma sociedade ética e igualitária.
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres” – (Rosa Luxemburgo)
Encerro com essa frase potente e que nos permite continuar com a reflexão acerca desses temas. Se você quiser continuar a conversa, ficarei muito contente em trocar contigo sobre como você também pode se munir de recursos, por meio da psicologia e da psicoterapia, para fortalecer esses valores em sua narrativa de vida.
Abraços,
Carol Freire