Me chame pelo meu nome: a experiência feminina na busca por sua própria identidade

“Sermos nós mesmos faz com que acabemos excluídos pelos outros. 

No entanto, fazer o que os outros querem nos exila de nós mesmos.”

Clarissa Pinkola Estés

Entender quem somos, talvez, seja uma das buscas mais complexas, necessárias e contínuas que experenciamos enquanto seres humanos. Quem nunca se olhou e disse “quem sou eu”? Pois é, esta pergunta hora ou outra surge – e ressurge – em cada um e cada uma de nós. Para as mulheres, no entanto, essa questão abarca camadas ainda mais nebulosas, sempre submetidas a uma aprovação do papel que devemos cumprir, ao comportamento que nos é “adequado” e, em última instância, de quem devemos ser. 

Neste caminhar, trago aqui como o desbravar, o aceitar, o acolher e o manifestar de quem somos tem sido um tema bastante presente e desafiador para a experiência feminina, em particular, e aproveito também para pincelar como a psicoterapia contribui para este encontro tão importante para nossas jornadas como mulheres. Vem comigo?

Quem sou eu, afinal de contas?

Essa tem sido uma indagação e uma angústia com o qual tenho convivido enquanto mulher e acolhido enquanto psicoterapeuta. Como vocês que me acompanham aqui sabem, gosto sempre de trazer as vivências que me atravessam no dia a dia como espelho das reflexões que proponho. Por isso, começo compartilhando uma situação pessoal que me ocorreu recentemente, a qual ilustra muito bem o caminho que quero percorrer neste artigo. 

Com a pandemia, deixei a minha antiga sala de atendimento e, com meu marido Márcio, comprei uma casa que comporta nosso espaço profissional – ele também é psicólogo. Um dia, fui visitar minha avó, de 95 anos, que me perguntou: “Como vai a reforma do consultório do Márcio?”. Em outras ocasiões, os questionamentos também trazem a figura dele como o referencial, por exemplo: “Já falou com Márcio sobre determinado assunto?”. E por aí vai. Além disso, frequentemente, alunos me perguntam “Você é a professora casada com o professor Márcio?”. 

Há algum tempo, venho sublinhando as respostas, que apontam outra direção: “o NOSSO consultório está quase finalizado”; “sou psicóloga, Mestre em Psicologia Escolar, especializada em Psicologia Corporal e Infância, trabalho com a defesa dos direitos da criança e do adolescente, sou psicoterapeuta, professora e TAMBÉM esposa do professor Márcio.” 

Esses dias, fui tirar meu passaporte, munida, claro, do meu RG e de  todos os documentos solicitados. A surpresa foi ser indagada sobre a minha certidão de casamento, para provar que eu sou eu, e, realmente, filha dos meus pais. No próprio RG, com a minha foto, constam todas essas as informações. 

Como fica nosso entendimento sobre nós mesmas, sobre nossa própria identidade, quando a sociedade não legitima nossa existência por nós mesmas, nem mesmo com documentos em mãos? 

Esse tipo de situação é corriqueira não só na minha experiência de vida, mas na de praticamente todas as mulheres – você pode substituir o marido por irmão, primo, tio etc. Muitas vezes, a fala não tem objetivo de provocar nenhum mal-estar, sendo até mesmo ingênua, mas, de qualquer forma, é carregada de símbolos machistas que reforçam a mulher como o “não homem”, a cidadã de segunda classe ou, como diria Simone de Beauvoir, o segundo sexo. 

Como psicoterapeuta, ao trabalhar com mulheres, tenho acolhido diversas histórias que transitam por aí, umas mais carregadas de segregação; outras mais sutis, porém, não menos perversas.

São mulheres que, por exemplo, firmaram um determinado acordo no casamento, abrindo mão da carreira, ainda que sólida, para cuidar dos filhos. Mas, no momento da separação, são acusadas de negligência com a vida profissional e, na busca por um novo acordo no divórcio, acabam sendo rotuladas como vigaristas e aproveitadoras. Ou ainda mulheres que atravessam um casamento descontente, em que a posse e a opressão aparecem de forma velada, indireta, sutil. No fim, percebem o “barba azul” com o qual se casaram. 

E as mulheres casadas e sem filhos? Sempre questionadas sobre a saúde emocional dos seus casamentos, sobre o que seu marido pensa sobre o seu trabalho. Isso aconteceu e acontece comigo. Quando fui conselheira do CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), viajava para Brasília uma vez por mês e ficava três dias fora.  Invariavelmente, era questionada “o seu marido não se importa com as suas viagens?”. Engraçado pensar que quando ele foi coordenador de um curso de graduação, por alguns anos, em outro município, ele saía de casa na quarta-feira e voltava na sexta-feira à noite  – ou seja, ficava os mesmos 3 dias longe – e nunca lhe perguntavam “O que a sua esposa acha disso?”. Sim, é simplesmente uma questão de gênero. 

As mulheres solteiras, sem filhos, também não saem ilesas. Escuto sempre nos atendimentos aquelas que se sentem na obrigação de estarem à serviço da família e dos outros, “afinal, você é solteira, não tem filhos, então, tem tempo”. Ao passo que aos homens solteiros é dada a liberdade de escolha e, ainda que tenham pais vivos ou sobrinhos, não recebem a mesma carga emocional ou a mesma cobrança sobre o que fazer com o seu tempo, o seu dinheiro, sua energia, sua profissão.

Por fim, se estamos falando de quem somos, também falamos sobre nossos corpos. E nem isso nos pertence. Mulheres têm denunciado que postos de saúde e atendimentos privados requerem a autorização do marido ou do parceiro para a indicação do DIU (dispositivo intrauterino, que consiste em um método anticoncepcional). Quem sou se em meu próprio corpo tenho domínio?

Todos esses casos e histórias se dão por conta de uma subordinação social assimétrica da mulher frente ao homem, que foi se naturalizando ao longo dos tempos, de tal forma que não vemos machismos, nem nas microesferas da nossa existência. Nem nas perguntas que nos fazem, nem nas respostas que nos exigem.

A importância do acolhimento entre as mulheres

O machismo, parte intrínseca do sistema patriarcal que vivemos, para ser eliminado, requer mudanças estruturais profundas na sociedade. No entanto, em nossas experiências cotidianas, podemos contribuir para romper com ciclos naturalizados de opressão. Nós, enquanto mulheres, podemos nos solidarizar com outras, substituindo o julgamento pelo acolhimento. Deixo aqui alguns exemplos:

São pequenos grandes gestos que promovem o reconhecimento daquela mulher enquanto ser humano, único e possível, respeitando sua construção de identidade. Além de serem estratégias capazes de enfraquecer o sistema, colocando no lugar da rivalidade construída por tantos anos entre nós, o propósito de acolher e unir.

Identidade enquanto metamorfose

“Eu prefiro ser, essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”

Raul Seixas – Metamorfose Ambulante

Um conceito que acredito ser importante trazer para nossa conversa é  o da identidade, o qual o psicólogo Ciampa (1984) define como “aquilo que se constitui a partir de um suporte biológico que lhe dá condições gerais de possibilidades e condições particulares de realidade.” No entanto, as características humanas, historicamente desenvolvidas, se encontram na forma de relações sociais.

Neste sentido, observo que às mulheres não é dado o espaço para se constituírem de forma própria, se reverem, se reinventarem, pois nossos corpos já trazem uma definição social dos papéis a serem desempenhados, como se não coubessem questionamentos, indagações, reflexões. Ao assumirmos uma determinada identidade, ficamos presas a ela, de forma estática, sem movimento. Isso nos rouba a vida, os sonhos, os projetos, as emoções.

O que nos é urgente é a possibilidade de experienciarmos novos papéis, novas vivências, já que é assim que vamos desenhando outras identidades, cada vez mais próprias. “A identidade é consequência das relações que tecemos e do como a tecemos, não é universal, tampouco atemporal ou fixa. Identidade é movimento, é desenvolvimento concreto. Identidade é metamorfose”. (CIAMPA, 1984, p.74). 

É este convite que faço às mulheres que acolho e a você que está aqui comigo neste texto: experimentar a nós mesmas. Percorrendo essa trilha, para compreender as meadas das histórias e tecer novos bordados, novas tramas, é que o caminho vai ficando cada vez mais claro, o chamado vai ficando cada vez mais nítido. A reivindicação de ser quem se é acontece.

As dimensões para ser o que se é

“Contemple o desenho fundo

Dessas minhas jovens rugas

Conquistadas a duras penas

Entre aventuras e fugas”

Elza Soares – Na Pele

Nessa aventura de buscar validar a si, de acolher os próprios sentimentos, vivências e marcas, encontro aconchego para a minha prática clínica nas falas de Carl Rogers. Ele aponta para o papel da psicoterapia em auxiliar na busca contínua de uma congruência de si, e nos convida a pensar que a busca de ser o que se é consiste em um processo contínuo. 

Quanto mais afinado e disponível estiver o e a terapeuta para esse encontro (sem expectativas, sem preconceitos, sem rótulos, sem julgamentos), mais acolhidos e autorizados os pacientes se sentem, experimentando um ambiente de aceitação incondicional.

Assim, estarão mais à vontade para se afastarem de ser quem não são para se aproximar daquilo que são. Quanto mais as pessoas permitirem que seus sentimentos as invadam, melhor encontrarão o seu próprio lugar, numa total harmonia.

Em resumo: ser o que se é não significa permanecer estático, fixo, circunscrito num modo de ser, mas mergulhar inteiramente em um processo de busca de si!

Rogers, inclusive, descreve as dimensões que os pacientes atravessam nesse mergulho profundo, que encontra terreno fértil quando a primeira preocupação do e da terapeuta é a de criar um clima de segurança, confiança e empatia, sem interferir na experiência do paciente com diagnósticos, explanações ou sugestões e orientações. Assim, tendem a surgir os seguintes momentos:

POR DETRÁS DAS FACHADAS

Neste momento, o receio da pessoa é tornar-se quem ela é. Então, se esconde atrás de uma fachada, porque olha para si mesma como coisa feia demais para se ver. 

PARA ALÉM DO “DEVIA”

A pessoa se desvia de uma imagem daquilo que ele deveria ser. Exemplo são alguns indivíduos que absorvem dos pais a ideia de que “eu devo ser bom” ou “eu tenho que ser bom”. Descobrem, nessa fase, que se sentiram compelidos a olhar a si próprios dessa forma e é desta ideia de si que se afastam.

 PARA ALÉM DO QUE OS OUTROS ESPERAM

A  pessoa se afasta do que a cultura espera que ela seja. Quando, enfim, se sente livre para seguir o caminho que quiser, é comum que se irrite com tais pressões. 

PARA ALÉM DE AGRADAR AOS OUTROS

Indivíduos se formam procurando agradar os outros, mas quando são livres, se modificam. Não querem escolher o que quer que seja de artificial, o que lhes seja imposto. A pessoa entende a definição de seus objetivos e intenções a partir das próprias descobertas, na liberdade e na segurança de relações compreensivas. 

PARA A DIREÇÃO DE SI – A CAMINHO DA AUTODIREÇÃO

A pessoa se encaminha para a autonomia, se tornando responsável por si mesma. Passa a distinguir os comportamentos que lhe fazem sentido daqueles que não fazem sentido algum. A liberdade experimentada é cheia de responsabilidade, e, no início, costuma tomar precauções e pode não sentir confiança em seus comportamentos. 

PARA A REALIDADE DO PROCESSO – A CAMINHO DE SER UM PROCESSO

A pessoa caminha mais abertamente para uma realidade fluida, em processo e em mudança. Não fica mais perturbada quando descobre que:

– não é mais a mesma em cada dia que se passa;

– não sente mais os mesmos sentimentos diante de uma dada experiência.

PARA A COMPLEXIDADE – A CAMINHO DE SER

A pessoa passa a ter clareza da complexidade de seus sentimentos e desenvolve o desejo de ser todo em cada momento, expressando toda a riqueza e tramas de suas emoções.

PARA UMA ABERTURA À EXPERIÊNCIA – A CAMINHO DE UMA ABERTURA PARA A EXPERIÊNCIA

Nesta fase, a pessoa pode rejeitar uma nova faceta sua ao percebê-la. Mas também é aqui que ela aprende, pouco a pouco, que a experiência é um recurso amigável e não um inimigo a recear.  “Ser o que realmente se é” implica na tendência do indivíduo em viver uma relação aberta, amigável e estreita com a sua própria existência. 

PARA UMA ACEITAÇÃO DOS OUTROS – A CAMINHO DE UMA ACEITAÇÃO DOS OUTROS

À medida que o indivíduo se torna capaz de assumir a sua própria experiência, caminha em direção à aceitação da experiência dos outros, passando a avaliá-las a partir do que elas são. Esta atitude de aceitação em relação à existência real se desenvolve ao longo da terapia.

PARA A CONFIANÇA EM SI MESMO – CAMINHANDO PARA UMA ACEITAÇÃO EM SI MESMO

A pessoa adquire progressivamente confiança em si mesma. Neste momento, o avanço no processo permite que ela expresse toda sua criatividade e valorize seus sentimentos, ao invés de reprimi-los.

Refletir para se compreender

Nesta jornada sobre si, os recursos da psicoterapia e o acompanhamento acolhedor do e da terapeuta são aliados potentes, que alimentam de reflexões e, dessas reflexões, é que brotam libertações. Para a experiência feminina, cercada de amarras, expectativas, olhares e cobranças, acredito que esse é um caminho de emancipação, de subverter as perguntas e dar diferentes respostas.

Quer continuar a conversa sobre a sua busca pela própria identidade, voz, timbre e trama? Conte comigo.

Abraços e até logo,

Carol Freire

 

Referências:

CIAMPA. A. C. Identidade. In LANE, S.M.T.  (Org)Psicologia social: o homem em movimento, Brasiliense, 1984. 

ROGERS, C. Tornar-se Pessoa. Martins Fontes; 5ª edição, 1997

Revista Trip

Catarinas

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/05/cultura/1562337766_757567.html