Na contramão das normas: a psicoterapia como caminho de expansão

Um dia alguém me sugeriu que adotasse um
alter ego respeitável — tipo um príncipe, um
almirante, um senador.
Eu perguntei:
Mas quem ficará com os meus abismos se os
pobres-diabos não ficarem?

Manoel de Barros

Quando vestimos uma roupa que não é do nosso tamanho, do nosso gosto, sem acordo com as nossas medidas, o que acontece? Ficamos desconfortáveis, puxando, repuxando, em um esforço tremendo para tentar caber em algo que não nos pertence. Em um mundo repleto de normas, papéis sociais, operado na lógica de resoluções rápidas, o desajuste entre ser o que se é e se adequar a um jeito supostamente certo de viver, sofrer, pensar e agir se torna fonte de angústia e sofrimento. Como é possível desvencilhar, desviar e superar as bordas para expandir possibilidades de existir? É sobre a psicologia como caminho para desatar esses nós, como acolhimento para romper paradigmas e libertar de amarras sociais, que preparei este artigo. Vem comigo? 

A (des)construção do meu olhar para a psicologia

Como não acredito em uma atuação neutra, é importante que voltemos no tempo para contar um pouco do percurso da minha prática profissional e dividir com vocês a (des)construção do meu olhar para a psicologia. Começo com uma vivência pessoal. Quando eu tinha 16 anos, atravessava momentos e movimentos identitários, e buscava meu lugar no mundo. Para me ajudar nessas descobertas, fui indicada a um psicólogo que era muito reconhecido, o ‘bambambã’ entre os adolescentes – ou pelo menos, entre os pais dos adolescentes. Ao longo do meu processo com ele, partilhando dores e delícias, me deparei com  uma primeira forma de psicologia adaptativa.

Enquanto narrava o que de mais íntimo me habitava, o ouvia dizer, com entusiasmo, que seus alunos precisavam me conhecer, afinal, eu ‘fugia de todas as regras da psicologia’, porque como filha de pais separados, deveria ser uma menina fadada a um caminho ‘desvirtuado’. No entanto, tinha amigos e projetos de vida, me dedicava aos estudos, gostava de festas, mas não me arriscava ou dava “pt”. 

Como alguém poderia determinar o que eu era, seria ou deixaria de ser? Por que traduzir uma experiência singular de vida em uma forma, frase ou sentença? O processo terapêutico terminou ali, naquele instante, ao passo que emergiu em mim uma vontade genuína de fazer uma psicologia que não buscasse rótulos, estigmas, predefinições. Uma psicologia que se manifesta na ‘força de por em movimento aquilo que se encontra estagnado, paralisado’, nas palavras de Helena Monteiro. 

Essa foi uma das direções que tomei e, com outras vivências, fui elaborando a profissional que gostaria de ser ao somar novas perspectivas. Desde o início da minha graduação em Psicologia, me apaixonei pela disciplina desenvolvimento humano, na qual pude aprender sobre como são os processos nas dimensões sociais, culturais, biológicas, cognitivas, emocionais. Daí, vem também o olhar atento à psicologia social, ou seja, aquela que traz a pessoa como ser inserido em um contexto psicossocial e político.  

Digo isso, primeiro, porque em nossa sociedade, questões estruturais atravessam as experiências de vida. Classe, gênero, orientação sexual, por exemplo, são aspectos impossíveis de serem ‘descolados’ das angústias, dores, manifestações, que se apresentam no processo terapêutico. Segundo, porque esta mesma sociedade estabelece padrões, define o que é normal, o que é isso, o que é aquilo, nos empurrando a todo momento a um enquadramento no que o mundo espera que sejamos. A psicologia que acredito não espreme as existências; ao contrário, busca alargar os horizontes.

De lá prá cá, são 25 anos de estudo, vivência, grupos de reflexão, pós-graduação, terapia, encontros, leituras e troca, bordando dia a dia uma psicologia crítica e ética, que compreende, citando Cecília Coimbra,:

“questões relativas à construção dos objetos, sujeitos e saberes que estão no mundo, não como se tivessem uma natureza, uma essência, mas enquanto produções históricas advindas das diferentes práticas sociais.”

Por entender que somos seres no mundo, vocês, que me seguem pelas minhas escritas, verão sempre argumentos que transbordam a psicologia prescritiva, medicalizante, e convidam a uma reflexão para o tecer humano que se dá nas meadas, linhas, agulhas e tecidos das nossas vivências e da nossa realidade social. Assim, a psicologia que aqui pulsa é aquela que acolhe as pessoas e as auxilia em seus processos mais diversos de desenvolvimento, como seres únicos e também partes de um todo.

“Existirmos, a que será que se destina”

Caetano Veloso

Como ser o que se é quando o mundo tem receitas prontas?

Seguindo nessa trama, vivemos numa sociedade de urgência, numa sociedade que Bauman vai chamar de líquida, ou seja, efêmera.


1. Cecília Coimbra – Psicologia e Política- A Produção de Verdades Competentes
2. Zygmund Bauman – Modernidade Líquida, Editora: Zahar

 

“Tudo é temporário, a modernidade (…) – tal como os líquidos – caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma”.

Desse modo, há uma ânsia em “dar certo”, em “consertar”, como se as pessoas fossem sempre inadequadas em um mundo adequado e correto – e nunca o contrário. É preciso se adaptar o mais rápido possível para poder entrar na máquina e tocar a vida. Não há possibilidade de erro, de dúvida, de experimentação. 

Neste sentido, a psicoterapia pode ficar em um lugar muito perigoso, se reforçar a ideia de que tudo está como deveria estar, levando a uma compreensão de si descolada desse mundo frenético e nos colocando “dentro da caixa” a qualquer custo. Onde fica, então, o espaço para se desvelar o próprio existir e descobrir as próprias cores, tons, dores, alegrias, luzes e sombras? Tudo vai ficando igual, todos vamos ficando iguais. Formatados, enlatados, moldados.

Viver sob o regimento de “ter que”, sem oportunidade e acolhimento do ser, do vibrar, do expandir, do pulsar, nos causa sofrimento, pois ao sentir o peso em corresponder ao outro, ao mundo, nos distanciamos do mais precioso que temos: nós mesmos. O antídoto para isso? Criar e fortalecer a autonomia para escrever nossa própria narrativa de vida – e a psicologia e a psicoterapia são recursos que apoiam essa construção. 

“Não é o que não pode ser, que não é o que não pode ser, que não é..” 

Titãs

Terapia para caber na caixa: que caixa? De quem?

Partindo para os arremates da nossa caminhada, toco em um ponto sobre as normas que vêm sendo criadas e disseminadas em relação ao próprio fazer da psicoterapia. As pessoas têm me dito frases como “não posso dar trabalho para meu terapeuta”, “tenho vergonha de te contar, mas eu surtei essa semana…”. Atenta a essas falas, reflito sobre que padrão é este que tem feito pacientes duvidarem tanto de si, inclusive no espaço que seria de cuidado, de acolhimento, de possibilidade de descobrir quem se é, sem máscaras e sem expectativas?


Vimos na pandemia um crescente discurso sobre a saúde mental – o que, de fato, é importante de ser discutido -, porém, rapidamente, o sistema se apropriou dessa pauta para criar um mercado de consumo que deve seguir um passo a passo para ‘se tratar’. Então, surgiram as modinhas dos psicólogos no TikTok e Instagram, até mesmo fazendo deboche das falas e sofrimentos dos seus clientes; entrevistas sobre as “boas maneiras” de ser terapeutizado; e ainda assistimos a terapia sendo transformada em produto de prateleira.

Retomo Helena Monteiro, que comenta: “o que se vê com frequência nessas plataformas é a oferta de uma psicoterapia descontextualizada que opera na equivocada via do paradigma problema/solução. Desta forma, com a mercadoria “atendimento psi online” ofertada no balcão, o que vimos proliferar nesse momento pandêmico foi a fabricação de modos de existência medicalizados e patologizados.”

Enquanto psicoterapeuta fundada nas bases que compartilhei acima, encontro um alerta para essa práticas e posturas dos psis*, nas palavras do querido Mauro Amatuzzi: “Um terapeuta que emita gestos e palavras de acolhimento, de compreensão e de questionamento com a pretensão de levar adiante o processo, mas sem que estes gestos e palavras estejam fundados em predisposições (atitudes) e em determinados valores pessoalmente assumidos, não entendeu ainda o que é ser facilitador do processo terapêutico autodirigido da outra pessoa.”

Desse modo, será a saúde mental fetiche, mercadoria ou um valor? Para mim, ao falar de saúde mental, estamos falando de cuidado, e tenho cuidado como um valor basal. Como diz Leonardo Boff :

Cuidar, é mais que um ato, é uma atitude de preocupação, de responsabilidade e de envolvimento afetivo com o outro”.


3. Helena Monteiro – Por uma clínica que venha nos trazer sol de primavera. Em: Clínica e (A)normalidade: Interpelações Pandêmicas, Editora Blucher.
4. Mauro Amatuzzi – Rogers: Ética Humanista e Psicoterapia. Editora: Alínea
5. Leonardo Boff – Saber Cuidar, Editora Vozes.

 

É arraigada nesta afirmação, e na contramão de um sistema normalizante, que me coloco como psicoterapeuta. Por isso, sempre digo aos pacientes que não tenho expectativas em relação a cada um e cada uma. Sei que, por vezes isso assusta as pessoas, mas esclareço aqui. 

Não ter expectativas significa que você pode se abrir no seu ritmo, que não há script predefinido, nem linha de chegada, nem pontos demarcados. O processo é feito de caminhar, tropeçar, voltar atrás, seguir. O que importa é a tomada de consciência, o percurso para dentro de si, dos seus valores, dos seus sentimentos mais íntimos. O encontro com seus medos e suas potências, suas amarras e suas possibilidades. E isso só é possível se há a ética de cuidado e de conexão. Sem bordas. 

Você gostaria de conversar para saber mais sobre como a psicoterapia pode te apoiar no fortalecimento da sua autonomia e na escrita de suas próprias formas de ser e estar no mundo? Me chame por aqui, será um prazer! 

*psis: abreviação de psicólogo/psicóloga.

 

Aproveite para ouvir a canção e não se adapte, crie!

Nando Reis – Não Vou Me Adaptar

https://www.youtube.com/watch?v=9SrEAosxpIg