“Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.”
(Cora Coralina)
A natureza tem, na mudança das estações, a certeza de que irá florir de novo e sempre. Assim é – ou deveria ser – o desenvolvimento infantil. A criança, como as árvores, precisa da segurança, da previsibilidade, da confiança para poder crescer, experimentar e se perceber no mundo. É por meio de cada nova descoberta que ela se des-cobre, se mostra e se coloca diante de si e do outro. Ela desvenda enquanto se reconhece.
Para isso, a segurança e a confiança no seu entorno, no seu jardim, são como adubo, capaz de nutrir a criança na sua jornada de aquisição de habilidades, conhecimento e autonomia, permitindo seu desabrochar cognitivo, físico e emocional. Para ser livre é preciso estar seguro.
Então, a partir dessa reflexão sobre o desenvolvimento infantil, segurança, liberdade e autonomia que te convido para conversarmos ao longo deste texto. No artigo, vamos olhar também para além da infância, costurando como essa apropriação de si e do mundo, no início da vida, se desdobra e atravessa o comportamento humano ao longo dos anos. Vamos lá?
O papel da autonomia no desenvolvimento infantil
Para começar a tecer nossa conversa por aqui, gostaria de destacar o papel da autonomia no desenvolvimento infantil e as formas de possibilitá-la no cotidiano das crianças.
Dessa maneira, adquirir autonomia é adquirir insumos para gozar de uma vida na qual a pessoa é consciente de si, de sua presença no mundo e de suas ações.
Neste sentido, quando se promove condições de aquisição de autonomia desde o início da vida, o desenvolvimento humano pode se dar com maior robustez, com raízes que são capazes de chegar mais fundo, proporcionando uma estrutura de ser – física, emocional e psicológica – mais preenchida e plena.
Diante dessa formação de ser que se estrutura de forma autônoma desde a infância, o sujeito, ao longo de sua vida, terá maior capacidade de decidir por si mesmo e de compreender a si, ao mesmo tempo em que é capaz de prestar atenção ao seu redor, de perceber seu meio, e de atuar nele com mais segurança, confiança e equilíbrio.
A segurança como fonte de autonomia no desenvolvimento infantil
Nesse nosso entrelaçamento sobre desenvolvimento infantil e autonomia, destaco neste típico, em especial, a segurança. Para que uma criança possa explorar o mundo e se reconhecer nele enquanto ser atuante, é fundamental que ela se sinta segura. Acredito que seja importante reforçar que desenvolver autonomia em uma criança não significa deixá-la sozinha para “se virar”.
Por isso, reforço que é preciso criar um espaço-tempo apropriado para que a criança possa acessar sua autonomia. Ela precisa estar assistida, ela precisa sentir a presença de uma pessoa adulta que lhe acolha e encoraje, mas também que a oriente e a proteja de situações das quais ela ainda não tem a capacidade de reconhecer como perigosas. É preciso compreender o que cada criança, em cada idade, dá conta ou não de realizar. Essa compreensão – e sobretudo respeito – sobre o que é possível ou não para aquela criança é essencial para um desenvolvimento cognitivo e emocional bem estruturado.
Neste sentido, destaco a educação e o espaço-tempo da escola como regadores do florescer da autonomia nos pequenos. Acredito que, assim como defende a professora e orientadora pedagógica e coordenadora do Grupo Pikler da A.M., Rosa Sensat, “a creche deve promover nas crianças o desenvolvimento da capacidade de se relacionar, capacidade de conviver: ouvir, compreender, tolerar, interagir, cooperar e compartilhar com adultos e com a outra criança, estabelecendo as bases para relações afetivas sólidas e seguras com adultos e com outras crianças.”
Aquisição de autonomia e a liberdade no caminho do desenvolvimento humano
“Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vão sendo tomadas […] Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente, aos vinte e cinco anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser”.
(Paulo Freire)
Seguindo nossa trama sobre desenvolvimento infantil e autonomia, coloco aqui um outro insumo primordial para o brotar de um indivíduo que se apropria de si: a liberdade.
Como disse no começo, para ser livre é preciso estar seguro. Como numa dança, segurança e liberdade compartilham dos passos e se fortalecem mutuamente. A segurança é uma premissa para autonomia e uma fonte para a liberdade.
No entanto, aproveito para destacar que, quando falo em liberdade, me refiro à liberdade da expressão da criança, da liberdade de cada uma ter seu próprio tempo e jeito, sem que seja definida e colocada como uma categoria universal de criança. A visão que generaliza os comportamentos infantis – e de outros momentos da vida – não enxerga as singularidades de cada ser e deixa turva a beleza e os desenhos únicos que habitam cada existência.
Por isso, segundo Sensat, ao partirmos do princípio que a criança deve se tornar autônoma, “é necessário que comecemos por respeitar sua atividade autônoma, sua liberdade de movimento, seu processo evolutivo.” É preciso respeitar o desenvolvimento de cada uma delas, o contexto no qual cada uma está inserida e por quais relações e condições cada uma é atravessada. Ignorar o entorno no desenvolvimento infantil é outra forma desfocada de compreendê-lo.
Agora, convido a pensarmos na conquista da autonomia para além da infância, pois, como disse lindamente Paulo Freire na citação que coloquei logo acima, trata-se de um processo que se dá enquanto se vive e, sendo assim, não se esgota ou se faz do dia para noite. A conquista de autonomia é um caminho a ser percorrido com as pegadas do tamanho dos desafios de cada fase da vida. A autonomia acontece no gerúndio dos tempos verbais e nos tempos do viver.
Liberdade e autonomia na juventude e na vida adulta
Por fim, nessa nossa jornada de conversa sobre desenvolvimento infantil, chego a juventude e a vida adulta. Diante do movimento dinâmico e contínuo de aquisição de autonomia, que poderíamos até colocar no plural, pensando em autonomias, e que se mantém ao longo da vida, é preciso olhar e pensar como acontece a apropriação de si, de seus desejos, anseios, medos e pensamentos nessas outras etapas da vida.
Como se colocar no mundo, como se compreender enquanto sujeito autônomo e consciente, capaz de tomar decisões e agir por si? No caso da adolescência, trata-se de uma fase da vida na qual há, assim como na infância, uma massificação de modos, jeitos e comportamentos. Sendo assim, como construir uma identidade autônoma? A liberdade que tenho é realmente minha?
Diante desses questionamentos, precisamos compreender que, enquanto na infância pensamos a liberdade para que cada criança possa se atrever no mundo dentro de seu tempo e de suas capacidades, na juventude a liberdade é vivida a plenos pulmões. E, neste sentido, precisa ser compreendida sob outras perspectivas e ser considerada junto de outro aspecto fundamental na construção de autonomia: a responsabilidade.
Como o jovem desfruta de sua liberdade e autonomia? Que uso ele faz desses mecanismos que afloram com força nessa etapa da vida, em razão da ausência de compromissos sociais, como família e trabalho, e de qualidades da própria idade, como saúde, beleza, vitalidade, vigor físico, etc.?
Dessa maneira, na adolescência, a questão das relações se acentua e a responsabilidade está em compreender como a liberdade, experimentada pelos jovens, é inserida – e vivida – na troca com o mundo, com o outro e, em especial, com os familiares. Acredito que seja importante destacar aqui que a liberdade, quando compreendida sob um ponto de vista liberal, individualizante, é prejudicial para compreensão de seu sentido mais profundo, amplo e, de fato, transformador, que é o do coletivo.
Assim, como defendem as pesquisadoras, Amana Rocha Mattos e Lúcia Rabello de Castro, “ao isolar a liberdade como atributo e direito do indivíduo, perde-se a dimensão coletiva implicada em seu exercício, além de afastar-se a temática da liberdade do campo da política e do agir comum.” Ou seja, a prática da liberdade e a aquisição de autonomia na juventude e na idade adulta extrapola o ser e afeta o todo. Assim, nessa florada da vida, a responsabilidade está em se permitir florescer enquanto se permite e respeita o florescer do outro.
Para finalizar este artigo, mas não encerrar a discussão, entendo como fundamental o papel das instituições e da sociedade em geral na formação de crianças e jovens autônomos, capazes de realizar escolhas conscientes sobre suas trajetórias pessoais e de constituir os seus próprios acervos de valores e conhecimentos para atuarem com responsabilidade no coletivo. Entendo que as pessoas, desde o início da vida, devem ter condições e acesso a terra boa, água em abundância e segurança para se desenvolverem de forma integral, enquanto seres humanos atuantes, conscientes e livres, com força da raiz até a flor.
“Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.”
(Cecília Meireles)
Bem, agora, fico por aqui e te convido a compartilhar comigo as ideias que floresceram por aí a partir dessa leitura.
Até mais!
Referências
JOVENS E A LIBERDADE: REFLEXÕES SOBRE AUTONOMIA, RESPONSABILIDADE E INDEPENDÊNCIA
JOVENS, ESCOLAS E CIDADES: Desafios à autonomia e à convivência
Pedagogia da Autonomia