Etarismo e o preconceito com o envelhecer das mulheres

Duas velhinhas muito bonitas,
Mariana e Marina,
Estão sentadas na varanda:
Marina e Mariana.
Elas usam batas de fitas,
Mariana e Marina,
E penteados de tranças:
Marina e Mariana.
Tomam chocolate, as velhinhas,
Mariana e Marina,
Em xícaras de porcelana:
Marina e Mariana.
Uma diz: “Como a tarde é linda,
Não é, Marina?
A outra diz: “Como as ondas dançam,
Não é, Mariana?”
“Ontem, eu era pequenina”, diz Marina.
“Ontem, nós éramos crianças”, diz Mariana.
E levam à boca as xicrinhas,
Mariana e Marina,
As xicrinhas de porcelana:
Marina e Mariana.
Tomam chocolate, as velhinhas, Marina e Mariana.
E falam de suas lembranças, Marina e Mariana.

(As Duas Velhinhas, de Cecília Meireles)


Viver é fluxo e quem vive, fatalmente, envelhece. É a ordem natural da vida. Estamos todos envelhecendo enquanto vivemos. No entanto, o envelhecer, verbo intrínseco à natureza humana, acontece de forma diferente para homens e mulheres, e o etarismo – o preconceito relacionado à idade – tem muito mais coro quando se trata das pessoas do sexo feminino. Enquanto os cabelos grisalhos são considerados um charme para os homens, quando se trata de nós, mulheres, os fios brancos à mostra são vistos como sinal de desleixo. Sobre o envelhecer das mulheres recaem, novamente, as garras do patriarcado, com seus estereótipos, opressões e padrões. Para refletir a respeito dessas nuances que atravessam o envelhecimento feminino, os efeitos do etarismo e o papel do feminismo, te convido a acompanhar a leitura deste artigo, no qual também incluo dicas de filmes, séries e livros sobre o tema. Vamos lá?

O que é etarismo?

“Para a sociedade, a velhice aparece como uma espécie de segredo vergonhoso, do qual é indecente falar.” 

(Simone Beauvoir, em A Velhice) 

Para começar nossa conversa aqui, vamos compreender o que é o etarismo e quais características estão associadas ao termo. Como falei no início, envelhecer é um processo natural da vida, no entanto, há uma concepção social em relação às idades avançadas que deturpam e desvalorizam o passar dos anos, excluindo e aprisionando as pessoas com mais idade. O etarismo, então, é esta visão depreciativa e preconceituosa, que enxerga a senioridade como um prazo de validade vencido. 

Podemos compreender o fortalecimento do etarismo após a Revolução Industrial, quando passou-se a ter a compreensão de que as pessoas idosas eram “inúteis” para o sistema econômico e social. Desse modo, para o sistema que vigora, as pessoas com mais idade são um peso, algo a ser desconsiderado. 

Como apontou Beauvoir, em A Velhice, livro publicado pela primeira vez em 1970, o ato de envelhecer é tido como vergonhoso, algo a ser escondido, abafado e calado. No entanto, nós estamos aqui, hoje, justamente, para romper com esse silêncio imposto e falar, especialmente, sobre o envelhecer das mulheres e como nós somos afetadas tanto pela idade como pelo gênero quando o assunto é o passar dos anos. Mergulharemos mais neste tema a seguir.

 

Já que citei Simone, aproveito para colocar aqui a primeira dica. Trata-se da biografia de Beauvoir, escrita por Katie Kirkpatrick, que faz uma costura das diversas Simones (a jovem, a intelectual e a amante). O texto é composto por uma série de provocações que nos faz pensar sobre os escritos da filósofa. Um livro maravilhoso!

 

Depois de treze anos sofrendo no sistema de assistência social, a órfã Anne é mandada para morar com uma solteirona e seu irmão. Munida de sua imaginação e de seu intelecto, a pequena Anne vai transformar a vida de sua família adotiva e da cidade que lhe abrigou, lutando pela sua aceitação e pelo seu lugar no mundo. A menina nos encanta com suas quebras de paradigma!

 

A idade sob outras perspectivas

Antes de falarmos sobre o etarismo e as mulheres, me permitam deslocar nossa perspectiva sobre a idade para uma visão não eurocentrada, que nos permitirá compreender que há outras formas de olhar para o envelhecimento.

No candomblé, por exemplo, a velhice é sempre um ideal a ser atingido. Na religião de matriz africana, elementos como improdutividade, declínio físico e morte iminente são valorizados, já que aproximam os “mais velhos” da ancestralidade, um princípio sagrado dessa tradição.

Dessa forma, no Candomblé, senioridade e ancestralidade não são deméritos, mas sim fundamentais na aquisição de conhecimento e estão relacionados à autoridade e força.

Então, envelhecer trata-se de um mérito e, como dizia Mãe Stella de Oxóssi, o velho é um herói que conseguiu vencer a morte. 

Outra referência que coloca a idade em um lugar diferente do compreendido pelo sistema vigente é a psicóloga junguiana, poeta e escritora norte-americana, Clarissa Pinkola Estés. Em seu livro  “A ciranda das mulheres sábias”, ela traz o arquétipo das anciãs e traz reflexões a partir da sabedoria das mulheres mais maduras, mais sábias e com mais vivência.

“Nunca subestime a resistência da velha sábia. Apesar de ser arrasada ou tratada injustamente, ela tem outro eu, um eu primordial, radiante e incorruptível, por baixo do eu que sofre o ataque – um eu iluminado que permanece incólume para sempre. Está comprovado que a velha sábia tem uma envergadura de asas de seis metros, escondida por baixo do casaco, e uma floresta toda dobrada no seu bolso fundo.” 

(Clarissa Pinkola Estés)

 

História de uma afro-americana que venceu a pobreza, construiu um império de produtos de beleza e se tornou a primeira milionária pelo próprio esforço. Uma mulher negra, que construiu um império de beleza para as mulheres negras, respeitando sua história! Muito interessante e baseado em fatos reais!

 

O etarismo e o efeito nas mulheres 

Bem, após esse deslocamento, volto para a reflexão sobre o etarismo e as mulheres. Não há dúvidas de que o etarismo –  ou idadismo, como também é denominado o preconceito etário – recai com muito mais força sobre as mulheres. Isso porque o etarismo tem suas raízes fincadas no patriarcado, no capitalismo e na concepção do ser humano enquanto gerador de bens, consumidor de produtos e como um objeto a ser explorado. 

Neste sentido, as mulheres são forçadas a não envelhecer – ou a pelo menos não aparentarem envelhecer. São cobradas massivamente, por meio de discursos – disfarçados  de autocuidado, para que se mantenham jovens, atraentes e bem cuidadas. Mas, vejam só, aqui está o alerta que gostaria de destacar. 

Esta cobrança, na verdade, abafa e oprime os desejos das próprias mulheres. Esta cobrança visa mulheres desejáveis de acordo com os padrões estabelecidos pelos homens, pela indústria. Esta cobrança não quer mulheres desejantes de si próprias, conscientes de seus corpos e apropriadas de suas vidas, de seus anos, de suas escolhas. Mulheres assim, com a força do tempo, são ameaçadoras ao sistema.

Aproveito aqui para ressaltar que não vejo problema nenhum em buscar por cuidado, por recursos, procedimentos estéticos e de saúde que proporcionem bem-estar e autoestima às mulheres. Contei aqui no blog sobre a minha experiência de ter colorido o cabelo aos 45 anos e, a partir disso, trouxe uma reflexão sobre o ‘não poder’ envelhecer, o que significa ir além da aparência física e contra o sentido de ‘universalização’ do envelhecimento.

No entanto, é preciso que haja consciência sobre nossos anseios e necessidades, sobre o que realmente faz sentido para a gente ou não. As mulheres devem se apropriar do seu envelhecer e das vivências e sabedorias que vêm com esse processo.

 

Jasmine, uma dona de casa alemã turista, larga o marido no meio do deserto, a meio caminho entre a Disneylândia e Las Vegas. Ela se refugia num bar e motel à beira da estrada chamado Bagdá Café. Ali, aos poucos, vai ficando amiga da dona do lugar, a negra Brenda, que tem problemas com os filhos e com o marido que a larga. As duas mulheres aprendem a conviver. Das intempéries das vidas das duas personagens – as violências e as dificuldades – vai surgindo uma amizade, uma sororidade. Lindo! É um filme do final do dos anos 80 que me toca até hoje!

 

Uma excelente série inglesa que conta a história de uma mulher (Phoebe Waller-Bridge), uma jovem adulta que foge de todos os tipos de padrões esperados pela sociedade: não é bonita, não tem namorado, uma vida sexual intensa, inclusive considerada promíscua, sem emprego dos sonhos, sem grandes amizades. Enfim, um grande convite a um mergulho existencial!

 

Neste livro, a autora faz todo um percurso histórico da construção da saúde mental da mulher, e de todas as nossas subjetividades! Uma pesquisadora brasileira contemporânea e afiada!

 

Como o feminismo pode combater o etarismo?

Por fim, compartilho aqui como o feminismo, um movimento político-social de luta contra a violência de gênero e pela igualdade de direito e de condições das mulheres na sociedade, pode e deve servir ao combate do etarismo. 

No entanto, trago antes dados importantes sobre a expectativa de vida que mostra que o envelhecimento da população está em uma crescente e garantir respeito, dignidade e inclusão para essas pessoas é – ou deveria ser – um compromisso de toda a sociedade. 

Em dezembro de 2020, ​​a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou o período de 2021 a 2030 como Década do Envelhecimento Saudável. De acordo com o último relatório do Fundo de População das Nações Unidas [UNFPA] em conjunto com a agência HelpAge International (2012) – “Envelhecimento no Século XXI: Celebração e Desafio”-, nos próximos dez anos, a quantidade da população idosa mundial será maior do que um bilhão de pessoas.

No Brasil, o envelhecimento populacional acompanha o cenário mundial. Por aqui, em razão da à diminuição da mortalidade infantil e ao declínio das taxas de natalidade, o fenômeno vem ocorrendo com uma significativa rapidez. 

Segundo dados da ONU, entre 2012 e 2050, a proporção de idosos passará de 10% para 29% da população brasileira; sendo que em 2025, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil pode ocupar o 6º lugar no ranking de países com maior número de idosos.

E, quando falamos envelhecimento no Brasil, falamos também da disparidade de longevidade entre homens e mulheres que é de quase dez anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desse modo, enquanto a expectativa de vida da população masculina é de 73 anos, a mulher brasileira vive até por volta de 80 anos. 

As mulheres vivem mais e é fundamental que possam viver com autonomia, com seus direitos assegurados e com sua liberdade protegida, sem precisar seguir mais uma cartilha. 

Por isso, neste sentido, o feminismo é uma ferramenta essencial, pois a idade, vista pela perspectiva feminista, é compreendida como mais uma etapa da vida da qual a mulher se apropriar, se orgulhar, honrar suas escolhas e a sua jornada. Para o feminismo, o envelhecer deve ser livre, digno e cada mulher deve poder vivê-lo em paz, sem estigmas, rótulos ou depreciações. Parece tão óbvio, mas é uma luta que está só no começo.

 

De Chimamanda Ngozi Adichie, este livro é um convite à reflexão do quanto não percebemos em nossa sociedade os discursos machistas e a construção do “lugar” da mulher na sociedade! Um livro curto, rápido e fundamental de se ler. 

Como um exemplo dessa vivência de envelhecimento, cito a atriz Andréa Beltrão, que vem se colocando como uma figura importante no palco do debate sobre envelhecer e rompendo tabus e preconceitos. Em entrevista à jornalista Milly Lacombe, para a TPM, ao responder a pergunta sobre o que era ser velha antes e o que é ser velha hoje, a atriz respondeu: 

“As idades mudaram. O conceito de idade mudou. Um tempo atrás pensavam de uma mulher de 50, de 60: agora ela vai ter que se vestir de maneira discreta. Mas isso mudou radicalmente. Você pode ser quem você é. Pode ter o cabelo rosa choque, usar bota até o joelho, batom, sombra azul turquesa, depende de como você se sente. Isso é uma libertação. Pode ter cabelo branco, lindo. Hoje se tem a possibilidade de envelhecer com mais liberdade, sem ter que se adequar ou perder coisas. Por exemplo: tenho roupa que uso há muitos anos e ainda me sinto bem com elas. Estamos melhor com isso, e graças à fala e à atitude das mulheres. Ficou mais fácil envelhecer hoje. Tem sempre as coisas pessoais, tem limitações, mas ficou menos pesado.”Outra artista que também tem se posicionado em relação ao etarismo e aos preconceitos com as mulheres e a idade é Vera Holtz. Em entrevista à revista ELLE, ela disse: “Eu tenho um tempo. Como é que eu quero passá-lo? Essa reflexão é produtiva, real. Isso não é ficção. Existe uma plenitude a caminho de uma finitude.”

 

Devota da ciência, Marie (interpretada por Rosamund Pike) sempre enfrentou dificuldades em conseguir apoio para suas experiências devido ao fato de ser uma mulher. O filme narra, então, as diversas questões do machismo do início do século XX, contra as quais precisa lutar para se tornar a grande referência na química e ganhar seu prêmio Nobel. É um inspiração para as mulheres na ciência!

Por fim, defendo que devamos ter muitas, muitas outras Andréas, Maries e Veras vivenciando a passagem do tempo com respeito, individualidade, autonomia e protagonismo, longe dos efeitos nocivos de uma sociedade que oprime e exclui o que julga inferior, descartável ou desviante. Que o fluxo da vida seja, de fato, natural e feito de humanidade, pois mais do que coragem é preciso não temer.

“O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.”

(Guimarães Rosa)

Deixo meu convite para compartilhar das suas reflexões sobre etarismo e as mulheres. Deixo também mais sugestões para um mergulho no universo de mulheres!

Dicas bônus!

 

Séries

Uma série brasileira, que se passa no Rio de Janeiro, cenário no qual uma mulher da alta sociedade de São Paulo passa por questões relacionadas ao casamento. A partir disso, passa a repensar sobre si, seus valores e projeto de vida!

 

Depois de deixar para trás um relacionamento abusivo e encontrar um emprego como faxineira, uma mulher luta para sustentar a filha e construir um futuro melhor, enfrentando violência doméstica e a ausência de políticas públicas

 

Esta é uma história delicada de uma mulher trans, que descobre um filho de 9 anos e que, ao longo da trama, vai passando por todos os desafios de ser uma mãe preta e subempregada na luta por uma vida digna para si e para seu filho. De uma poesia pura!

 

Filmes

Um documentário da Netflix que fala do processo de vida da Laerte! Para muito além da sua “descoberta” de gênero, o filme faz uma reflexão sobre o processo de se constituir mulher, seus desafios, o não-lugar e o lugar de ser mulher! Maravilhoso! 

 

Filme que narra a trajetória da primeira mulher a compor a suprema corte americana. Casamento, filhos, carreira e todos os preconceitos contra uma mulher intelectual, sexy, mãe e inteligente são abordados na trama.

 

Livros

Essa obra marcou minha vida e ainda marca. Me encanto com a garra, a esperança e os dilemas de uma adolescente! Considero um livro atemporal!

 

Eu amo biografias e a história dela e seus valores comungam com os meus valores e ideários de sociedade e mundo!! Uma história também para ser lida com as crianças.

 

Agora, para fechar, a história de Angela Davis! A obra é um retrato contundente das lutas sociais nos Estados Unidos durante os anos 1960 e 1970 pelo olhar de uma das maiores ativistas de nosso tempo. Davis, à época com 28 anos, narra a sua trajetória, da infância à carreira como professora universitária, interrompida por aquele que seria considerado um dos mais importantes julgamentos do século XX e que a colocaria, ao mesmo tempo, na condição de ícone dos movimentos negro e feminista e na lista das dez pessoas mais procuradas pelo FBI. Que mulher e que ensinamentos!

 

É isso!
Nos vemos no próximo artigo. 

Até 🙂

 

Fontes:

ONU
UFJF
https://www.scielo.br/j/ptp/a/qzfZqrSwzvzzTjzDJR6mmGp/?lang=pt
A Velhice
Scielo
Revista Trip
UFMG
Az Mina
Carta Capital
ELLE