Do apego seguro à autonomia: confiando nas competências da criança

“Para entender nós temos dois caminhos:
O da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo”

Manoel de Barros

O corpo, esse meio pelo qual estamos em contato com o mundo, é também a porta de entrada para desenvolvimento infantil. É por isso que abro este artigo com o poema do querido Manoel de Barros – palavras que me dizem muito sobre como a criança percebe e se inscreve na realidade, desde seus primeiros instantes aqui. 

No entanto, em uma sociedade em que o tempo, o ritmo, o processo são ceifados por uma urgência de ‘acontecer’, há pouco espaço para que o corpo seja vetor das descobertas e promotor dos vínculos de afeto. Em meus atendimentos de orientação de pais, percebo que há, sim, o desejo em exercer uma parentalidade afetiva, consciente, carinhosa, mas esta obsessão social pelo desempenho empurra o cuidado para um dilema que envolve também o desejo da construção de uma criança autônoma e munida de autoestima.

É para refletirmos juntos sobre essa questão que te convido a continuar a leitura, mergulhando em abordagens que trazem para a discussão a ética do cuidado sob outras lentes que nem sempre conseguimos acessar diante de tantas receitas prontas. Vem comigo?

“O relacionamento cria um espaço seguro para o bebê”

Emmi Pikler

Sabe-se que para o desenvolvimento de uma segurança básica, terreno para a construção da autoestima e da autonomia da criança, é necessária uma relação de suporte, confiança e afeto. Essa máxima é um consenso nas diversas compreensões acerca do desenvolvimento infantil. A partir disso, em meus estudos, recorro a Emmi Pikler, pediatra húngara que estabeleceu uma abordagem focada no desenvolvimento neuropsicomotor na primeira infância, em que o cuidado está relacionado às possibilidades de movimentos livres, com respeito ao ritmo e ao tempo de cada criança.

Desse modo, um primeiro paradigma que precisamos romper é a noção de que bebês ou crianças ainda vão vir a ser; na verdade, elas já são sujeitos competentes, que nascem com a tendência ao desenvolvimento e, nesta fase, precisam de espaços seguros para que isso aconteça. Neste sentido, é importante ressaltar que as crianças têm dois momentos fundamentais para esse desenvolvimento: de um lado, a possibilidade de experimentar o mundo de maneira autônoma, explorando com seu corpo, suas percepções, suas sensações; do outro, a necessidade de uma pessoa adulta significativa que lhe permita a construção de um envelope psicológico capaz de gerar o sentimento de ser e de existir.

Assim, é importante que a criança esteja no espaço preparado, organizado, limpo e seguro para que ela possa fazer essas explorações por ela mesma, sem que pais e mães ou pessoas que estão no cuidado interfiram toda hora no processo, retirando a oportunidade de descoberta por si mesma – ou seja, impossibilitando o sentimento de competência e confiança da criança.  Esse sentimento também pode ser promovido em momentos de cuidado e de conexão, como na hora das refeições, na hora da higiene, na hora de colocar para dormir ou em situações nas quais a criança seja o foco pleno da atenção da pessoa adulta. 

Ao privilegiar estes espaços, é possível construção de vínculos e de intersubjetividade, o que significa que do encontro entre a criança e a figura adulta também nasce a compreensão do “eu” e do “outro”.

Permita-se dançar

Desde o nascimento, o bebê se empenha em instalar com a mãe todo um sistema de trocas relacionais. Uma relação baseada na partilha de sensações e de emoções, na qual mãe e bebê se contagiam pelos afetos um do outro, sem se perderem se si. Essa dança respeitosa, Daniel Stern, psiquiatra infantil, chama de “accordage affectif” – ou sintonia afetiva. 

Em uma coreografia afinada, alegre e cheia de vida, adulto e criança se encontram e podem, ambos, experimentar a vitalidade e o equilíbrio, fundamentais para o desenvolvimento da autonomia. Sendo assim, entendemos o relacionamento como um processo que acontece por meio do contato, do reconhecimento do outro, e esse relacionamento, em um movimento de aproximação e separação, é o que permite a elaboração das próprias singularidades, seja para a criança ou para a pessoa adulta.¹

Neste sentido, para um bom desenvolvimento de apego – entendido como vínculo afetivo – é essencial que haja uma relação em que tanto a pessoa adulta quanto a criança estejam nutridos e se sintam respeitadas nas suas necessidades. Essa “dança da criança que expressa suas emoções e o adulto que dá o enquadre firme e gentil” é que vai promover a “autorregulação”.

“Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.”

José Saramago

Retomando os dilemas da parentalidade, trago aqui sábias palavras do poeta Saramago, que nos convida a refletir sobre a “vida de carne-e-osso”, daquela de quem percebe as doçuras, as  incoerências, as tensões e tudo que vem junto com o verbo viver. Costuro essa questão ao desejo de educar crianças autônomas em pais e mães que também sentem e querem sentir a própria vida!

Tem se falado muito sobre as questões do trauma psicológico e seus reflexos nas fases da adolescência e da vida  adulta. De fato, precisamos ficar atentos e atentas, mas não devemos, em nome desse medo de traumatizar, reforçar nossos traumas,  justamente no momento em que se busca cuidar.

O cuidado é importante sempre, mas um cuidado em que adulto e criança estão seguros, disponíveis, abertos, atentos, desejosos do fortalecimento, uma vez que é por meio da conexão que nos constituímos humanos seguros. É importante lembrar que nem todo cuidado promove sentimento de pertença e de existência – um mero cuidado desconectado do outro é apenas um cuidado de sobrevivência. Assim, faz-se importante que pais se diferenciem de seus filhos e se reconheçam como tais. Isso implica em cuidado e não em abandono.

Para Martin Buber, filósofo austríaco, o fundamento da relação está na confirmação da existência do outro, enquanto um não-eu. Isso é importantíssimo para a criança, pois essa não diferenciação é que vai causar o sofrimento, o desajuste.

Pais cansados que já extrapolaram seus limites com certeza terão mais dificuldade e frustração na tentativa de estarem conectados e plenamente abertos a cuidar de seus filhos. Por isso, é valioso que reconheçamos as nossas dores, nossas fraquezas, nossos receios, nossas incoerências, e tantas outras coisas que nos atravessam, da mesma forma que se faz necessário alimentar o desejo de fazer diferente, buscando suporte para esse novo fazer.

Aos pais e mães, deixo aqui meu acolhimento e meu incentivo para a busca de novas formas ou outras formas de se relacionar com seus filhos e filhas, sempre partindo desse cuidado conectado e afetuoso.

“É realmente muito importante que os pais acreditem na sua sensibilidade de pais, de que eles são as pessoas mais indicadas para saber o que é melhor para suas crianças”

Rita Góes Bezerra de Moraes

Em sinergia com o convite acima, e ciente desse mar de angústias do mundo contemporâneo, trago aqui algumas das possibilidades para um refúgio na construção de apego que promova segurança e autonomia das crianças e que contribua para o exercício de uma parentalidade mais saudável.

Reforço aqui que é preciso que pais e mães confiem nas competências de seus filhos e suas filhas; que preparem o ambiente para os movimentos espontâneos; que aproveitem os momentos de cuidado e contato; é preciso que confiem no poder da abertura afetiva; e que possam experimentar essa dança, essa coreografia de forma delicada e viva na conexão com seus pequenos. Além disso, compartilho as referências que tenho estudado o desenvolvimento dessa sintonia afetiva que somam à reflexão:

  • Apostar na competência dos bebês e das crianças, pois é se experimentando que elas se desenvolvem em suas potencialidades;
  • Reconhecer que o bebê e as crianças são sujeitos de ação, e não somente de reação, desde a mais tenra idade;
  • Compreender que os processos autônomos só podem se desenvolver a partir da existência prévia de elementos da autonomia, que, ao se concretizarem no aqui e no agora em interação com o meio e também por meio da maturação funcional, se tornam progressivamente mais complexos e diferenciados;
  • O grande papel da linguagem na construção de sentido do mundo: converse com os bebês e as crianças nos momentos de cuidado. Apresente o mundo, fale do seu corpo, das sensações, dos afetos, das emoções envolvidos neste momento. 

Debater sobre a parentalidade no mundo em que o nosso desempenho é observado e cobrado a todo instante é fundamental para que possamos sair do modo automático e encontrar novos caminhos possíveis para as relações com as crianças. E fazer disso uma janela para pais e mães vivenciarem o cuidado sem perder suas próprias singularidades e subjetividades.

Espero ter contribuído para a sua elaboração enquanto pai ou mãe, e sigo por aqui para acolher suas dores e demandas. Envie-me uma mensagem e vamos continuar essa conversa. 

Abraços, 

Carol Freire

 

Fontes: 

Lunetas
Abordagem Pikleriana: a importância da autonomia da criança para a educação
Martin Buber, um teólogo que prega o diálogo
Écologie du sensible: les arts de l’accordage
Gestalt-terapia

¹Referência: YONTEF-Processo-Dialogo e awareness – cap. 7