“Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar[…]”
Adélia Prado
Nós, mulheres na sociedade contemporânea, enfrentamos uma série de desafios e expectativas complexas em relação aos papéis que, supostamente, devemos desempenhar. Somos as cuidadoras e as responsáveis pelo bem-estar geral da família e do entorno. Somos pressionadas a sermos multitarefas e a performar simultaneamente e de forma impecável e resignada como profissionais, mães, parceiras.
Porém, à medida que tentamos cumprir todas essas expectativas e padrões impostos, vamos experimentando uma sobrecarga significativa, o que acaba criando um prato cheio para os jargões como “síndrome da impostora”, “irresponsabilidade afetiva”, “mimimi”, “narcisista” e tanto outros em que tentam nos encapsular.
Além disso, expectativas tradicionais de gênero criam uma pressão adicional sobre as mulheres, levando a um equilíbrio delicado – e dolorido muitas vezes – entre carreira, família e outras responsabilidades. Funções que, além de pesarem, podem oprimir nossos mais genuínos sonhos e desejos.
Afinal, quando nosso destino é traçado para ser “bela, recatada e do lar”, antes mesmo de nascermos, onde há espaço para buscar carreiras ambiciosas ou para realizar objetivos pessoais para além da família? Aqui, acho importante reforçar: não é um problema se preocupar com a casa, fazer atividades domésticas, cuidar dos filhos; o cerne da questão é a imposição social de que o âmbito doméstico é o único lugar que nos cabe, excluindo as muitas possibilidades e coloridos que podem nos compor e nos realizar.
Assim, ao atender mulheres e compartilhar da escuta de suas histórias e desejos, tenho sentido o convite de estudar cada vez mais as meadas e as linhas que formam esse bordado que é a vida da mulher contemporânea. Mulheres que desejam liberdade e leveza, ao mesmo tempo que também almejam uma família, trabalho e amor. Muito embora não qualquer família, qualquer trabalho e tampouco qualquer amor.
“Nem sempre é necessário tornar-se forte. Temos que respirar nossas fraquezas.”
Clarice Lispector
Especialmente por meio de movimentos feministas, temos lutado por mudanças sociais, por direitos iguais, direito sobre nossos próprios corpos, acesso à educação e a oportunidades e condições de trabalho equitativas, entre outras garantias de dignidade e de representatividade. Falo em movimentos feministas, no plural, porque as questões enfrentadas pelas mulheres variam de acordo com cultura, sociedade, raça e contexto histórico, o que gera feminismos interseccionais. Indo além, como diria bell hooks, o feminismo deve ser aquele que se propõe a transformar modos de vida e as relações de poder.
Percorrendo esse caminho, autoras como Valeska Zanello, Silvia Federici e Helena Hirata estão entre as vozes que tenho lido e que analisam criticamente as dinâmicas de gênero, a exploração e as injustiças nas quais as mulheres, muitas vezes, se encontram. As leituras nos convidam a pensar, ajudam a nos conscientizar sobre essas questões e a promover um diálogo mais amplo sobre a igualdade de gênero e a justiça social.
Por isso, aproveito este artigo e este tema para compartilhar percepções e atravessamentos que tocam a pressão pela performance feminina. Vem comigo?
Zanello faz uma contundente crítica sobre como o modo de vida capitalista incentiva a busca implacável de produtividade, sucesso e consumo. Isso cria uma pressão constante para que mulheres atendam a todas as expectativas, incluindo serem bem-sucedidas profissionalmente, cuidarem da família e manterem padrões de beleza e estilo de vida. Além disso, esse sistema explora o trabalho não remunerado das mulheres, como o cuidado doméstico.
Silvia Federici vai trazer outro ponto importante nessa temática. O cuidado com a casa, com os filhos, apoio emocional são contribuições que não são reconhecidas como um trabalho legítimo, no entanto, sem toda essa dedicação em geral das mulheres, os homens poderiam ter tanto tempo para seus projetos profissionais e pessoais? Sem a roupa lavada, a compra feita e os filhos cuidados, poderiam buscar suas próprias ambições? É quando Silvia chancela que “o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não remunerado.”
Para mulheres que vão ao mercado de trabalho, mais barreiras, como a desigualdade salarial. Segundo o levantamento IDados, mulheres ganham, em média, 20,50% menos do que os homens. Em outras palavras, é como se trabalhássemos 74 dias de graça. Além disso, falta representação em cargos de liderança e o preconceito de gênero que atravessa diretamente as possibilidades de contratação e de ascensão feminina em suas carreiras. Exemplo simples: quando um homem vai ter um filho, ninguém o questiona sobre o que vai ser da sua vida profissional; quando esse tema se refere a uma mulher, a pergunta é quase que imediata: “E como você vai trabalhar tendo o bebê?”.
Quando até o autocuidado é cooptado para oprimir mulheres
Na sociedade de consumo, estudiosos do tema têm trazido que corpos tristes são bons consumidores. Se estamos tristes, compramos aquela comidinha gostosa, lemos livros de autoajuda, vamos ao salão de beleza ou day spa. Além dos papéis familiares e profissionais, nós, mulheres, também enfrentamos pressão para atender a padrões de beleza e imagem corporal. Não podemos envelhecer, ter rugas ou cabelos brancos. Nossos corpos precisam caber em padrões irreais, ainda que isso nos custe saúde emocional, física e financeira. Aqui, também é importante frisar: buscar formas de se sentir bem não é um ato condenável, muito pelo contrário. No entanto, vale a análise crítica de que o discurso de autocuidado pode alimentar justamente o sistema que não nos permite viver em toda nossa potência e gozo.
Nessa lógica, o tal do “autocuidado” e da “saúde mental” viraram hits do momento! Todas as agências de publicidade estão vendendo todo tipo de mensagem. Mas aquela que fica mascarada é a de que é a sociedade que muitas vezes dita e espera que as mulheres sejam perfeitas em todos os papéis que desempenham. E isso funciona tão bem que leva – a nível individual – a uma autoexigência extrema e à sensação de que nunca se está fazendo o suficiente. Nos sentimos constantemente em dívida com o mundo.
Desse modo, Zanello destaca como as mulheres enfrentam desafios únicos em relação à saúde mental devido às expectativas e pressões sociais que lhes são impostas. Isso pode incluir o equilíbrio entre carreira e vida familiar, a luta contra estereótipos de gênero e a falta de apoio emocional adequado. A exposição à discriminação de gênero, assédio e violência também são fatores para problemas de saúde mental específicos para as mulheres.
“Não tenho tempo para mais nada, ser feliz me consome muito”
Adélia Prado.
Mulheres exaustas na sociedade do cansaço
O termo “sociedade do cansaço” foi popularizado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, para descrever a sociedade contemporânea em que as pessoas estão constantemente sob pressão para serem produtivas, eficientes e bem-sucedidas. Isso pode levar a um estado de exaustão física e mental, resultante da autoexploração e da busca incessante de atender às demandas impostas.
Ao conectar as ideias de Helena Hirata, Silvia Federici e Valeska Zanello, podemos entender que a mulher trabalhadora no mundo contemporâneo enfrenta não apenas as pressões da sociedade do cansaço, mas também desafios relacionados à invisibilidade e desvalorização do seu trabalho, especialmente quando ele está relacionado à reprodução social e ao cuidado da família. A romantização desses papéis tradicionais pode contribuir para a manutenção dessa desigualdade de gênero no mercado de trabalho e na sociedade em geral.
Neste sentido, é interessante não apenas denunciar a exploração e a opressão às mulheres, mas também encarar as análises como substâncias para para discutir a necessidade de políticas mais equitativas e de uma mudança cultural em relação ao gênero e às responsabilidades compartilhadas.
Como uma boa defensora de políticas públicas, acredito que muitas dessas mudanças sociais dependem de ações e estratégias em âmbito público capazes de assegurar um mundo mais igualitário. Leis de licença parental adequadas e de suporte à creche, por exemplo, podem abrir caminhos para que as mulheres conciliem suas carreiras com a maternidade de uma forma mais saudável e sustentável – vale lembrar que a nossa licença maternidade é de 120 dias e a licença paternidade somente de cinco dias – em um casal homoafetivo, essa questão se complica ainda mais.
Finalizo com Zenello, que enfatiza a importância da resistência e da busca por alternativas dentro desse contexto. Em um primeiro passo, envolve o olhar crítico e o questionamento de papéis de gênero em nossa sociedade, em nossas próprias relações com nós mesmas e com nossa família, parceiros. No aspecto individual, buscar caminhos para o equilíbrio e o compartilhamento de responsabilidades e cuidado e acolhimento emocional podem proporcionar fortalecimento e autonomia. Já no coletivo, eleger candidatas que tenham pautas alinhadas às demandas das mulheres e reivindicar aos governos políticas que valorizem o bem-estar das mulheres também são importantes iniciativas para movimentar a transformação pela qual tantas de nós já lutaram até aqui.
Como você, mulher, se sente diante dos desafios e das pressões pela performance feminina? Quais são seus desejos e sonhos que ficam em segundo plano para dar conta de todo o restante? Se quiser compartilhar suas vivências e seus atravessamentos, será um prazer ouvi-la.
Até logo!
Abraços,
Carol Freire
REFERÊNCIAS:
Dispositivos de subjetivação e sofrimento das mulheres
Saúde Mental e Gênero (Mental Health and Gender
Mulheres: trabalho e movimento. Entrevista com Helena Hirata