Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo.
[Michel Foucault]
Alguém observa um casulo, o qual dá sinais de que será rompido em breve. Esse alguém espera ali, na expectativa de que logo vivenciará o deslumbre do primeiro voo de uma borboleta. Mas nada acontece, nada aparentemente acontece por um bom tempo. Bem, guarde essa história para mais tarde, pois ela trará uma reflexão bastante pertinente para o nosso tema de hoje: o valor da supervisão em psicologia.
Escolher a Psicologia como trilha profissional, muitas vezes, parte de um desejo de acolher o outro, de oferecer ajuda ao outro. Uma motivação bastante legítima, claro, e você pode estar se identificando lendo isso aqui. No entanto, quando percorremos a formação, entendemos que exercer a Psicologia é mais árduo do que imaginamos e está longe de ser simples quanto gostaríamos.
Primeiro, porque nos deparamos com diversos questionamentos, angústias, descobertas, encantamentos e desencantos! Segundo, porque, como professora de cursos de Psicologia há 20 anos, enxergo a própria formação, de forma geral, ainda bastante eurocentrada, pragmática, tecnicista, muito pouco reflexiva, investigativa e, especialmente, muito pouco coletiva. Há pouca oportunidade para se construir, se desconstruir, se construir novamente, em parceria, em conjunto.
Diante de diversos dilemas e atravessamentos que se apresentam a quem decide atuar como psicólogo ou psicóloga, a solidão é um dos fatores que torna tudo mais desafiador. É nesta lacuna que acredito que a supervisão em psicologia se insere, ampliando as possibilidades de continuidade no processo formativo do psicólogo em um espaço de troca, de escuta, de acolhimento ético, circunscrito na sociedade contemporânea e nas demandas que nos chegam diariamente. Acredito que juntos podemos fazer e encontrar mais potências do que na solidão dos nossos consultórios e práticas.
Tenho em Martin-Baró, psicólogo salvadorenho, alguns alicerces para minha prática profissional, dentre eles o de que a psicologia deveria ser uma ferramenta para a conscientização e a mudança social. E isso não se faz sozinho, estudando sozinho, refletindo sozinho, mas no coletivo, em trocas, em questionamentos e escutas com os outros.
“Exigências de perfeição limitam a capacidade do indivíduo de funcionar dentro de si mesmo.”
[Fritz Perls]
Já escrevi um texto bacana sobre a supervisão em psicologia e como a vejo, mas aqui vou escolher outros elementos para refletirmos. Essa frase acima é o fio para um dos pontos que gostaria de levantar: vivemos buscando uma prática perfeita, impecável – as redes sociais, por exemplo, corroboram essa ilusão apontando o tempo todo que existe uma “fórmula mágica” para o sucesso ou para as caixinhas que devemos nos agarrar para não errar nunca.
Uma prática ética, alicerçada nos preceitos técnicos e científicos da profissão são sempre fundamentais, mas precisamos lembrar que somos humanos.
O psicólogo, a psicóloga, precisa, de antemão, se ver como humano e, portanto, passível de mudanças, questionamentos, receios, equívocos. Neste sentido, há algo que sempre gosto de trazer para alunos e alunas e colegas que passam pela minha supervisão, a ideia de que precisamos olhar para dentro, antes de olhar para fora. Se enquanto profissionais devemos apoiar pessoas a descobrirem “a dor e a delícia de ser o que é”, devemos, primeiro, fazer o mesmo com quem somos.
Afinal, somos instrumentos em constante afinação. Somos seres em movimento, e assim, em constante mudança.
Além disso, acredito ser fundamental destacar que não existe apenas uma Psicologia, mas sim, Psicologias, no plural. (Fica a dica para a leitura do texto da Ana Bock. Veja nas referências deste artigo os detalhes). Existem várias epistemologias psicológicas, como o behaviorismo, a psicanálise, o humanismo, a fenomenologia sócio-histórica… Assim, quando se fala em “psicologia baseada em evidências” é importante se questionar sobre qual psicologia estamos falando e também, a partir dessa pluralidade, compreender que há diferentes caminhos e possibilidades de interpretação.
Trago essa reflexão aqui, pois isso tem sido um chamariz para uma prática profissional tida como perfeita, neutra, imparcial, mas, como dizia o querido Florestan Fernandes “O cientista pode e deve ser objetivo, neutro, nunca”. A prática da ciência psicológica deve buscar parâmetros éticos, técnicos e científicos, mas nunca assépticos e neutros.Toda intervenção psicológica científica deve seguir os rigores da ciência, uma ontologia, uma epistemologia e uma metodologia reconhecidos pela comunidade científica e, no caso do Brasil, validado pelo Conselho Federal de Psicologia. É para essa prática comprometida com um fazer científico e ético, e também conectado às complexidades históricas, sociais e econômicas e culturais, que convido a pensar sobre a importância da supervisão em psicologia como oportunidade de construção ampliada, potencializada e fortalecida.
“Ser empático é ver o mundo com os olhos do outro e não ver o nosso mundo refletido nos olhos dele.”
[Carl Rogers]
Desde o meu início na Psicologia, minhas experiências foram coletivas e compartilhadas com supervisores e professores dispostos e disponíveis para discutir a minha prática de forma ética, social e cuidadosa, me apoiando para me encontrar como Carol Freire psicóloga – e não como réplica deles. Infelizmente, muitos de nós psicólogos tivemos ao longo da nossa formação professores ou aprendemos nas nossas relações com o mundo que precisamos copiar nossos mestres, se quisermos conquistar respeito e valorização. Somos pouco encorajados e estimulados a desenvolver e a descobrir o nosso próprio olhar, as nossas próprias indagações, nossas forças singulares.
Desse modo, é muito interessante destacar a importância da supervisão em psicologia como um espaço colaborativo e enriquecedor para o desenvolvimento profissional, processo no qual, com experiência e acolhimento, são propostas reflexões sobre uma práxis crítica, uma postura investigativa e o exercício do pensamento crítico e propositivo, contribuindo significativamente para o crescimento do profissional na busca do colorido no seu fazer.
Para esclarecer esses pontos, trago a seguir mais detalhes sobre do que tratam, um a um dos tópicos que comentei. Siga comigo.
Práxis Crítica: A práxis crítica envolve a integração entre teoria e prática, levando à reflexão sobre a ação e à transformação da realidade. A supervisão que encoraja a práxis crítica incentiva o psicólogo a questionar suas abordagens, a considerar contextos sociais e culturais, e a buscar constantemente maneiras de aprimorar sua intervenção.
Postura Investigativa: Uma postura investigativa implica uma abordagem curiosa e científica em relação ao trabalho. A supervisão pode estimular a busca por evidências, a análise de resultados e a exploração de novas abordagens ou métodos de intervenção. Isso permite um aprimoramento contínuo e uma adaptação às necessidades em constante mudança.
Pensamento Crítico e Propositivo: O pensamento crítico implica em analisar, questionar e avaliar constantemente o próprio trabalho. Ao mesmo tempo, o pensamento propositivo envolve a capacidade de gerar soluções e propostas construtivas. A supervisão que encoraja essas duas dimensões promove a habilidade profissional em enfrentar desafios de maneira construtiva.
Ética: A ética, como eu trabalho, para além do cumprimento das indicações para o exercício da profissão, indicados pelo Conselho Federal de Psicologia, é destacada por pensadores como Hannah Arendt e Leonardo Boff, que são alicerces fundamentais na minha prática profissional. A supervisão pode ser um espaço para discutir dilemas éticos, dilemas morais e tomar decisões informadas, contribuindo para uma prática mais responsável e consciente.
Espaço Educacional: Por ser uma estudiosa e apaixonada pelos preceitos difundidos por Paulo Freire, destaco a importância de tornar o espaço educacional um local de aprendizado, questionamento e desenvolvimento mútuo. A supervisão pode ser vista como uma forma de educação continuada, na qual tanto a pessoa supervisora quanto e o ou a profissional em supervisão aprendem e crescem em conjunto.
Ao integrar esses elementos na supervisão em Psicologia, cria-se um ambiente que promove não apenas a eficácia clínica, mas também o engajamento ético, a consciência crítica e o desenvolvimento profissional sustentável. Essa abordagem colaborativa e reflexiva, certamente, enriquece a prática profissional e contribui para uma atuação mais significativa e contextualizada.
Lembra-se da história do começo deste artigo? Pois bem, voltamos a ela. A expectativa de se deslumbrar com o primeiro voo da borboleta fez com que aquele alguém decidisse acelerar o processo, aquecendo o casulo com o hálito. A borboleta, então, saiu, mas suas asas não estavam fortes o suficiente para encarar o voo e ela morreu logo depois. A história é do escritor grego Nikos Kazantzakis, e se chama “Consciência da Vida”. Podemos, desta breve fábula, compreender que cada pessoa tem seu processo, seu tempo interno, seu ritmo – e assim é também para se encontrar e se reencontrar (por que não?) na prática da Psicologia. A supervisão em Psicologia não tem o papel de interferir, nem acelerar o processo, pelo contrário, tem o objetivo de permitir que o processo se desenvolva na singularidade de cada profissional, trazendo reflexões e trocas capazes de fortalecer corpo e asas, sempre que necessário.
Afinal, passaremos algumas vezes pela fase lagarta, pela fase do casulo e pela fase da borboleta ao longo da carreira. E é muito mais encorajador quando não passamos por elas sozinhos.
Se você quer conversar sobre supervisão em psicologia, me chame aqui e vamos seguir esse papo, a partir das sua vivência.
Abraços!
Carol Freire
Referências:
Construção de significados e ambiguidades na supervisão de estágio em psicologia
https://search.scielo.org/?q=supervis%C3%A3o+em+psicologia&lang=pt&filter%5Bin%5D%5B%5D=scl
BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. 13. ed. reform. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004