Imaginar mundos, descobrir universos, explorar novas perspectivas e acolher sentimentos. A leitura e a contação de histórias são mais do que uma forma de entretenimento, são ferramentas de desenvolvimento extremamente poderosas, especialmente na infância.
Como psicoterapeuta e orientadora de pais, em um mundo cada vez mais digital, acredito ser importante resgatar o quanto as histórias infantis são essenciais para estreitar os vínculos, abrir espaço para a criatividade e pavimentar a construção de indivíduos mais conscientes de si e do outro. Por isso, preparei este texto em que compartilho com vocês um pouco da minha própria experiência com a leitura e também trago as percepções sobre este tema tão fantástico – em todos os sentidos!
“A leitura para a criança não é, como às vezes se ouve, meio de evasão ou apenas compensação. É um modo de representação do real. Através de um “fingimento”, o leitor reage, reavalia, experimenta as próprias emoções e reações.” CERVO (2001, p. 16)
A leitura infantil sempre fez parte da minha vida. Tínhamos em casa uma série de livros que ficavam sempre ao alcance das mãos. Na escola, durante o ensino infantil e o ensino fundamental I, a sexta-feira era o “dia de biblioteca”, dia de me aventurar pelas prateleiras em busca de contos, magia, fantasias. Já amante desse universo, também passei a contar histórias aos meus irmãos, primos caçulas e sobrinhos – e segui com essa partilha com as crianças que encontro em minha jornada.
Me lembro também de visitar a Malasartes, a primeira livraria infantil no Brasil, lá no Rio de Janeiro. A loja era pequena, mas ali viviam tantos personagens, tantas descobertas e tantas possibilidades. Era uma delícia estar cercada por livros! Outro programa que amava de paixão era assistir à querida Bia Bedran contando histórias cheias de afeto, de música e de arte na extinta TV-Rio, durante as minhas férias na casa da vovó Lena.
Hoje, continuo ávida pelos livros e pelas histórias, não só para o estudo e para o relaxamento, mas também como aliados em meu trabalho de orientação de pais. Faço questão de trazer esse recurso como um veículo de transformação das relações e do desenvolvimento dos pequenos e – por que não – dos adultos.
Ficaria aqui linhas e linhas narrando minhas delícias e deleites no universo da literatura e histórias infantis, mas o objetivo deste conteúdo é contribuir para que você e seus filhos também possam fortalecer esse laço com os livros – e entre vocês – no dia a dia em família. A seguir, então, apresento algumas das referências que me tocam e que guiam minha atuação, enquanto profissional e pessoa. Vamos embarcar nessa viagem?
A criança é feita de cem
(Loris Malaguzzi)
Para começar o nosso papo, trago Loris Malaguzzi, pedagogo e educador italiano e idealizador da abordagem Reggio Emmilia. Essa proposta compreende a criança como protagonista do seu processo de aprendizagem e de construção do conhecimento, como sujeito de direitos e grande portadora de potencial de desenvolvimento. Malaguzzi aponta que a criança é feita de cem, pois ela tem cem ideias, cem jeitos de pensar, cem mundos a descobrir, cem mundos para inventar.
Neste sentido, o papel da literatura e da poesia para a infância é uma forma de dar asas a essas possibilidades de desbravar as cem linguagens. Afinal, as histórias, em suas variadas formas e apresentações, alimentam o nosso desenvolvimento enquanto seres humanos, o que Vigotski chama de “processos psicológicos superiores”, como a memória, a consciência, o pensamento e a atenção. É aquilo que vamos desenvolvendo a partir das nossas relações com os outros e com o mundo, quando vamos interiorizando os eventos e dotando-os de sentido e de significado.
É preciso escovar as palavras
(Manoel de Barros)
Não poderia deixar de compartilhar um dos autores que mais me emociona com suas palavras: o querido Manoel de Barros, poeta curitibano, amante das infâncias e da natureza. Seu poema “Escova” me toca profundamente e divido com vocês esse saber tão bonito:
“Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entressonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.”
“Escovar as palavras”, como enquanto lemos ou escrevemos, é uma forma de irmos traduzindo, compreendendo e sentindo o mundo. Ao fazer isso, potencializamos a criança para o desabrochar da vida, da dúvida, da pesquisa e do encantamento. Manoel de Barros nos desperta sobre a entrada dos pequenos no universo das coisas, da natureza, das pessoas. Assim como quando Paulo Freire nos convida dizendo que “ a leitura se inicia junto com a vida, se alimenta de todos os sentidos”, ou seja, a “leitura de mundo” precede a “leitura da palavra”.
Bebendo dessas fontes consagradas, encaro a literatura infantil como um caminho lúdico e rico – para além do desenvolvimento intelectual – que nos permite conversar com as crianças sobre a realidade, as relações, as emoções, os sentimentos, os valores e a imaginação. A literatura é, então, vital para o desenvolvimento enquanto seres humanos.
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
(Manoel de Barros)
Esta é outra frase potente e que traduz a reverência ao que somos capazes de enxergar. Especialmente entre tantas telas e tecnologias, sigo no convite de que a imaginação transvê, transpõe barreiras do concreto e nos permite ir além. Desta forma, no meu trabalho com orientação de pais, sempre indico alguns livros para lerem com seus filhos, como uma forma próxima, agradável e acolhedora de estar com os pequenos, de falar sobre a vida e transver os mundos possíveis.
Vamos às dicas!
Senta que lá vem história…
Muitos dos meus leitores me pediram sugestões de livros para ler para ou com as crianças. Então, desenhei a lista a seguir com os títulos que abrem portas para territórios tão importantes de partilharmos com os nossos filhos.
Sobre as emoções e sentimentos: é importante que as crianças aprendam a sentir diversas emoções e também saibam validá-las. Não significa “mimar”, mas ajudá-las para que acolham o que estão sentindo e, assim, sigam de forma saudável e segura.
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Emocionário: Diga o que você sente – Cristina Nuñez Pereira e Rafael R. Valcárcel – Editora Sextante, 1ª edição – 2018
Numa aventura colorida, uma emoção vai puxando a outra, cada qual com sua história, trazendo com naturalidade as muitas emoções que vivenciamos no nosso cotidiano.
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O Livro dos Sentimentos – Todd Parr – Panda Books – 2011
Livro com poucas palavras e ilustrações belíssimas, que convida a criança a observar os diversos sentimentos! Perfeito para as mais pequeninas.
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O Monstro das Cores – Anna Llenas – Aletria – 2018
Ah! E quem não tem um monstro desses dentro de si? Nessa aventura, Anna vai nos contando como o “monstro” reconhece suas emoções e aprende a lidar com cada uma delas.
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A Chapeuzinho Amarelo – Chico Buarque e ilustrações de Ziraldo – 1970
Livro que traz nossa chapeuzinha à brasileira, com suas explorações, em medos e descobertas. Sem contar o lindo olhar do querido Chico!
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Casa dos Sentimentos – Nana Toledo – Editora Gato Leitor – 2015
O livro aborda vários sentimentos, situações em que eles aparecem, além de possíveis soluções aos conflitos experienciados.
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Dino Davissauro – Nanda Perim – Coleção Conto com Você – 201
Todos nós perdemos a cabeça de vez em quando, explodimos, somos grosseiros, bravos e assustamos os outros. Nesta história, conhecemos o pequeno Davi, que descobre sua porção dinossauro e vai aprendendo a lidar com ela de uma maneira bem criativa e acolhedora.
Sobre um mundo plural, colorido e diverso: como a infância é nossa inauguração no mundo das gentes, das histórias e da cultura, se torna essencial mostrarmos às crianças a diversidade dos modos de ser e de existir. Assim, é possível contribuir para que sejam pessoas tolerantes, empáticas e que abracem a pluralidade do mundo, sem preconceito e com respeito.
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Amoras – Emicida – Companhia das Letrinhas – 2018
Esse livro é um grande convite ao processo de construção da identidade, com referências à cultura e à resistência negra.
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O Menino Maluquinho – Ziraldo – Melhoramentos – 1980
Em tempos de tantos diagnósticos infantis, vale a pena um resgate ao querido personagem do Ziraldo! Um menino que vivia a infância de maneira criativa, fora da caixa e feliz. Amo de paixão!
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Menina Bonita do Laço de Fita – Ana Maria Machado – Ática – 1986
Ana Maria Machado, uma das minhas autoras preferidas quando era criança e que marcou minha infância, traz a questão da representatividade racial de maneira poética e sensível.
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Tapajós – Fernando Vilela – Brinque-Book – 2014
Um convite a pensar sobre a rotina de crianças ribeirinhas, apresentando uma realidade e uma experiência de vida bastante diferente das rotinas da cidade e dos grandes centros urbanos.
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Tudo Bem Ser Diferente – Todd Parr – Panda Books – 2002
Neste livro, Tod Parr traz as muitas diferenças que experienciamos na vida: seja questão de raça, de adoção, de deficiências, ajudando na compreensão de que as diferenças não devem nos afastar. É ideal para crianças de até 2 anos.
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Marcelo, Marmelo, Martelo – Ruth Rocha – Salamandra – 1976
Marcelo é um menino criativo, perguntador e irreverente. Uma história deliciosa para dar asas à imaginação e à curiosidade!
Sobre Ética, Direitos Humanos: as famílias que acompanho sabem que a ética e os direitos humanos são meus valores fundamentais. É a partir deles que acredito termos uma sociedade melhor e mais igualitária. Assim, vejo como indispensável transmitir às crianças a ideia de que somos seres conectados, ajudando-as a criar a consciência de que agir de forma mais solidária transforma o mundo!
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Declaração Universal dos Direitos das Crianças- Ruth Rocha – Salamandra – 1989
Neste livro colorido, de ilustração belíssima, Ruth Rocha apresenta cada um dos artigos da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças. Um bom começo para se falar sobre o tema com os pequenos!
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Papo de Sapato – Pedro Bandeira e Ziraldo – Melhoramento – 2005
As memórias de um sapato nos leva a refletir sobre a nossa sociedade de consumo e de injustiça social.
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É Tudo Família – Alexandra Maxeiner e Anke Kuhl – L&PM Editores – 2013
O livro apresenta as diversas formas de família e a importância do respeito entre todos.
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Flictz – Ziraldo – Melhoramentos – 1969
Ziraldo mostra a importância de todas as cores para o arco-íris, tocando no tema da pluralidade e dos direitos humanos de maneira muito sensível e sutil.
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Os Saltimbancos – Chico Buarque, Sergio Bardotti (letras) e Luis Enriquez Bacalov (músicas) – Autêntica Infantil e Juvenil – 2017
A partir de um quarteto de bichos, a história traz os valores da amizade, da solidariedade e do respeito. Indico muito ouvir o CD com as músicas. A experiência fica completa e mais divertida!
Sobre o processo de crescer: para o desenvolvimento dos pequenos, eu recomendo muito os livros da coleção “Conto com você”, um coletivo de autoras encabeçado pela Fernanda Vernilo. Essa coletânea conta, com ludicidade, poética e transparência, os diversos desafios e sentimentos experienciados pelas crianças no processo de crescimento. Fica a dica aqui.
Cantar e Contar Histórias
Em tempos de podcasts, a contação de histórias ganha novos contornos. Por isso, indico alguns dos perfis que trazem aventuras em áudio e são repletos de boas surpresas!
- Mamãe me conta História: a querida Paula Rebouças conta histórias criadas por ela mesma. Ah! E ainda tem a possibilidade de contar a história do seu pequeno! O link para ouvir está aqui.
Histórias Pra Conversar: com a querida Lucia Masini, fonoaudióloga de mais alta conta e carisma, este é um podcast de histórias infantis que abre espaço para os ouvintes compartilharem as ideias contidas em cada história com outras pessoas! O link para ouvir está aqui.
Coisas de Criança: Thiago e Anne nos convidam para descobertas sobre como as coisas funcionam de uma forma científica e lúdica, aguçando a curiosidade das crianças! O link para ouvir está aqui.
E quem quiser, que conte outra!
Ah! Que delícia falar sobre esse tema que é tão especial para mim e tão transformador para o mundo. Por meio da leitura e da contação de histórias, é possível fortalecer os laços com as crianças, criar momentos de troca e de diversão e ainda potencializar o desenvolvimento dos pequenos com toque de fantasia.
É com este propósito que abraço o poder das linguagens infantis em meu acompanhamento de pais e reforço sempre a importância dos livros como parceiros na construção de identidade e consciência. Bom, como toda história tem seu fim, vou ficando por aqui, mas espero ter contribuído para que você se junte a mim nessa viagem tão profunda e encantadora na literatura infantil.
Fique à vontade para mandar uma mensagem e conversamos mais sobre isso!
Até a próxima,
Abraços!
Carol Freire