Síndrome da Impostora: questionar mais esta “condição feminina” é fundamental para emancipar mulheres

-Posso te dizer tudo?

– Pode.

– Você compreenderia?

– Compreenderia. Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei, e por ser um campo virgem, está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é minha parte maior e melhor, é minha largueza. É com ela que compreenderia tudo. Tudo o que não sei é a minha verdade.

Diálogo, Clarice Lispector 

 

Falta de confiança em si mesma, acreditar que não é digna de conquistas e reconhecimentos, sensação que a qualquer momento alguém irá te desmascarar e a farsa será descoberta. Esses sentimentos atravessam as escutas que faço das mulheres ao longo dos encontros nas sessões de terapia. São mulheres de todos os perfis: jovens, maduras, mães, casadas, solteiras, autônomas, diretoras de empresa. Mulheres plurais, com diferentes experiências e jornadas de vida. Essas angústias convergentes assumem nas manchetes e nos artigos o nome de Síndrome do Impostor. É possível encontrar desde textos científicos e acadêmicos até abordagens em sites de negócios e revistas femininas sobre como essa condição afeta as pessoas e, segundo eles, especialmente as mulheres. Por isso, você deve ter ouvido falar sobre a Síndrome da Impostora – com o “a” no final para reforçar o gênero.

 

No entanto, ao ouvir com frequência esses relatos e lido os discursos a respeito, tenho refletido sobre esta “desordem psicológica” – entre aspas mesmo, já que me questiono até que ponto essa nomenclatura faz sentido. Para dar conta dessa questão, de uma desordem entre aspas, resgato a lógica da medicalização da vida, na qual os sofrimentos são sempre atribuídos ao indivíduo, como se este fosse a fonte geradora da dor e, portanto, quem deve ser ajustado ao sistema. Mas e se invertêssemos esse ponto de vista? E se compreendermos que somos seres mergulhados em tramas sociais, políticas, econômicas e culturais e que estas tramas atravessam nossas experiências e jornadas? Separei um trecho do Manifesto Desmedicalizante e Interseccional “Existir, a que será que se destina?” que representa bem este pensamento acima:

“Cada   vida   humana,   por   sua   vez,   carrega heranças  históricas,  é  necessariamente  entrelaçada  a  outras  tantas  vidas.  Sua compreensão,  portanto,  não  pode  se  dar  de  forma  isolada,  mas  nas  redes  e contextos  em  que  as  pessoas  circulam  e  estão  inseridas,  ganhando  concretude. Gonzagueamos: “é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta  gente onde quer que a gente vá”.

Pegando a trilha do quanto o contexto influencia em nossos comportamentos, é importante, inclusive, trazer uma perspectiva histórica para nossa conversa. Afinal, ao olhar para trás, será que a Síndrome da Impostora alimenta uma nova face da histeria feminina? Vamos comigo neste olhar!

 

A título de curiosidade, minimamente intrigante, hystero, em grego, significa “útero”. Desde os tempos antigos, Hipócrates já falava dos “males das mulheres”. Na Idade Média, como traz em seu livro “Calibã e a Bruxa”, a filósofa Silvia Federici nos recorda da caça às bruxas e a demonização dos saberes e dos corpos femininos. No século XIX, em um contexto de desenvolvimento das sociedades modernas e industriais, a histeria foi associada a um comportamento desviante da mulher, colocando-a no lugar de ser isolada, tratada e curada.  Ou seja, percebemos, na linha do tempo, serem criadas condições e “formas de ser” da mulher, sempre com viés negativo: “loucas”, “perigosas”, “enfermas”.

Assim, é impossível não lembrar de Simone de Beauvoir, quando, em seu livro “O Segundo Sexo”, ela fala da mulher enquanto outra categoria, tratada por todos (inclusive por nossos pares) como seres inferiores e desqualificados. Neste sentido, me gera desconforto acessar esses conteúdos que dissecam sobre a Síndrome da Impostora como uma condição da mulher contemporânea, adicionando, mais uma vez, um rótulo à nossa existência. Se antes éramos bruxas e histéricas, com a ascensão feminina no mercado de trabalho e independência e a voz que isto nos traz, não seria hora de criar mais um estado que rebaixe a mulher e a coloque de novo “em seu lugar”? Seria a Síndrome da Impostora uma nova roupagem, uma nova patologização, para nos colocar como incapazes e subcidadãs?

 

“É pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta.” 

Simone de Beauvoir

 

Trago esta frase como uma denúncia e um alento. Denúncia, porque é a partir dela que se sustenta a “Síndrome da Impostora”, já que se é por meio do trabalho que diminuiremos a distância entre homens e mulheres, a sociedade rapidamente captura a mulher fazendo com que se sinta “fraude, incompetente ou em dúvida de si”. Ainda assim, entendo como um alento, pois nos serve de mola propulsora a seguir em nossas buscas, movimentos e asas rumo à nossa liberdade de pensamento, de autonomia financeira e de alma.

Sinto que as mulheres se sentem aprisionadas e reféns de mais um rótulo que lhes é conferido a partir do outro, do externo que a julga e a faz duvidar de sua potência, de suas qualidades, de suas cores. Como psicoterapeuta e defensora da emancipação feminina, me preocupa, portanto, os modismos e os discursos prontos para nos encaixarmos, pois acredito que ser mulher é um ser em constante construção, que se define em suas ações a cada instante da vida . 

“Se alguma mulher sente que precisa de algo além de si mesma para legitimar e validar sua existência, ela já está abrindo mão de seu poder de autodefinição, de seu arbítrio” 

bell hooks

Em minhas leituras sobre o tema da Síndrome da Impostora (em dissertações, teses, revistas de negócios e de entretenimento), encontro até mesmo uma categorização: a perfeccionista, a guerreira, a malabarista. Novamente, enxergo isso como uma forma de tratar as angústias que permeiam a experiência feminina como se fossem escolhas. Como se optássemos por sentimentos e dimensões assim, quando, na verdade, são fruto de uma construção histórica de que a mulher precisa dar conta das coisas, ser a “mulher maravilha” em todas as situações. Sabe aquela frase “por trás de todo grande homem há uma grande mulher”? Este é o tipo de armadilha que nos leva a crer que não podemos falhar, nem pedir ajuda, nem hesitar. 

Mas e por trás de uma grande mulher? Minha experiência de escuta e de terapia convergem para uma mulher cansada, oprimida, desamparada, que precisa dar conta de tudo para não desmoronar. É quem precisa “sorrir e acenar” que está tudo bem. Mas, lá no fundo, quando esse “tudo bem” não é sentido genuinamente, dói de modo dilacerante. Rasga a alma. Elas correm para buscar entender o que estão sentindo e, ao ler nas revistas e portais sobre a Síndrome da Impostora, são capturadas pela frase “sou uma fraude”, quando, na verdade, são induzidas a duvidar de si – reforçando a ideia de que somos o ser de segunda classe.

Ao ouvir suas histórias, acolher seus sentimentos, percebo que o exercício de validar seus próprios sentimentos, suas angústias, suas dores e seus medos faz com que essa perceção da dúvida de si vá se dissipando, dando lugar a uma voz interna potente, legítima e consciente de suas qualidades e possibilidades. Acredito que é neste caminho que o empoderamento seja mais efetivo e transformador para as mulheres, sem etiquetas e patologias elaboradas para gerar um novo “peso” na jornada feminina. Acredito que seja pelo conhecimento de si, e pela coletividade também, que podemos romper com amarras sociais e culturais que parecem, sempre, querer nos colocar em xeque à medida que nos fortalecemos e nos libertamos.

Para finalizar, deixo aqui um trecho de uma música que me vem à cabeça toda vez que falo sobre esse tema e que nos provoca sobre o que é “ser mulher”. 

“Eu sou pau pra toda obra

Deus dá asas à minha cobra

Hum! Hum! Hum! Hum!

Minha força não é bruta

Não sou freira, nem sou puta

Porque nem toda feiticeira é corcunda

Nem toda brasileira é bunda

Meu peito não é de silicone

Sou mais macho que muito homem”

 

Pagu | Rita Lee

Questionar discursos é uma ação necessária quando falamos sobre o empoderamento e a liberdade feminina, já que, ao longo da nossa história, a rota de inferiorizar a mulher é persistente. Então, espero que tenha gostado da reflexão! Se você se identifica com esta abordagem e está, neste momento, perseguindo uma forma de autoconhecimento, de se fortalecer e dar asas às suas asas, vamos conversar. É só me mandar um “oi” por aqui e agendamos um papo. 

Abraços e até breve, 

Carol Freire