O conceito de família vem se transformando ao longo do tempo. No mundo contemporâneo, novas configurações e possibilidades de elo se apresentam, trazendo também outras dinâmicas entre pais e filhos. E cá entre nós, muito mais complexas. Se antes havia uma hierarquia mais rígida do tipo “adulto manda, criança obedece” e o debate sobre como a relação familiar repercute na vida adulta não era tão popular, hoje, vemos uma mudança de perspectiva. Diretrizes culturais e sociais nos levam a um modelo de criação mais próximo, horizontal e afetivo, no qual as crianças também têm voz, presença e espaço. E os pais, por sua vez, estão cada vez mais preocupados em como criar seus filhos da melhor forma, tentando, a todo custo, poupá-los de experiências negativas.
É claro que o diálogo sobre a parentalidade é saudável para que possamos orientar os adultos e educar as crianças de modo que sejam seres amados e conscientes de si e do mundo, mas, gostaria de compartilhar com vocês uma situação que tem aparecido com frequência nos meus atendimentos. Há algum tempo, venho recebendo pais aflitos que procuram se adequar a uma educação “não tóxica” e “não agressiva”. Chegam com o forte anseio de não serem “promotores de traumas” e, muitos deles, se mostram paralisados pelo medo de errar.
Não estou aqui dizendo que discordo das formas de cuidado mais humanas, próximas e afetivas. Pelo contrário, acredito que este caminho é verdadeiramente possível e muito mais interessante. No entanto, me pergunto: quem dita ou quem nos ensina a sermos adultos melhores? E mais: quem cuida, no mundo adulto, desses adultos?
Somos bombardeados por artigos, vídeos, posts e influenciadores com diversas dicas e fórmulas mágicas sobre como ser pai e mãe melhores. Mas te convido para um questionamento: melhor que o quê? Melhor para quem? O que está “ruim” ou “não está bom”? Em uma sociedade extremamente competitiva, que glorifica a performance, a otimização do tempo, e uberiza o trabalho e a vida, os pais são colocados em uma encruzilhada de sentimentos, buscando incessantemente um “futuro das crianças” e uma perfeição inatingível.
Nessa busca, muitas vezes, os pais se cobram tanto para não falhar – e não falhar significa evitar que os filhos tenham contato com sentimentos e experiências “negativas” – que acabam por superprotegê-los. Isso, no entanto, impede que as crianças experienciem momentos e sensações que fazem parte da natureza humana e da vida em sociedade. Mais uma vez, a pressão depositada no exercício da parentalidade leva os adultos a se agarrarem em cartilhas que não atendem às singularidades da própria família.
“Não importa se se trata do pai, de um avô, de uma babá ou de um elefante. Quem estiver disposto a amar uma criança terá a possibilidade de fazê-lo”
Laura Gutman, especialista e temas de família, psicopedagoga
O ponto é que não existe receita pronta. A parentalidade não é uma lista de “faça” ou “não faça”. Por isso, trago esta reflexão da psicopedagoga Laura Gutman. Concordo com ela, afinal, as crianças precisam mesmo é de uma disponibilidade afetiva de um adulto que se interesse por ela, que deseje estar com ela e que, ao fazê-lo, esteja próxima e conectada. Esse é o desafio da vida contemporânea.
Neste sentido, um dos grandes dilemas que os pais vivenciam está relacionado ao tempo dedicado às crianças. Com a vida profissional invadindo a casa – antes mesmo da pandemia – a angústia por “compensar” os filhos está sempre presente nas falas dos pais. Para contrapor isso, Laura Gutman diz que “as crianças precisam somente sentir nossa proximidade emocional. Necessitam registrar que estamos sutilmente presentes e atentos para facilitar suas vidas, que estamos com a alma disposta a protegê-los, acariciá-los e tratá-los com carinho. Não importa o tempo que estamos trabalhando.”
Pais, abracem as tonalidades afetivas
Recentemente, em uma formação que fiz com Bernard Golse, psiquiatra infantil e atual presidente da da Association Pikler-Lóczy France e Presidente da Associação Européia de Psicopatologia da Criança e do Adolescente (AEPEA), ele apontou o desenvolvimento infantil a partir de duas dimensões: SER e EXISTIR. Na dimensão do ser, nos encontramos como organismos vivos, que têm uma necessidade de se expressar para fora, para o mundo externo. Na dimensão do existir, há o encontro com o outro e, então, a necessidade de absorver o mundo de fora para dentro. Assim, os adultos, na relação com as crianças, devem ajudá-las a passar do sentimento de ser para o sentimento de existir. E para os adultos? Quem faz essa “passagem” dos pais nesse processo de ser para existir?
“Uma tonalidade afetiva é um jeito, não apenas uma forma ou um padrão modal, mas jeito no sentido de uma melodia, que não paira sobre a assim chamada presença subsistente própria do homem, mas que fornece para este ser o tom, ou seja, que afina e determina o modo e o como de seu ser” (Heidegger, 2003, p. 81).
Assim, mães e pais, deixo um convite para se despirem dos rótulos, se olharem e se acolherem com todas as tonalidades afetivas das quais é feita a vida! Desta forma, nossos modos de ser abarcam diversos modos de sentir o mundo – e assim o é o adulto e a criança.
“Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa”
Rubem Alves
No meu trabalho com orientação de pais, busco sempre identificar os seus valores, os seus desejos, os seus medos e as suas potências. Isso porque, as fórmulas prontas dos diversos cursos “faça você mesmo” descaracterizam as particularidades e não se sustentam a longo prazo, especialmente se não fazem sentido com o que a família tem como âncora. Recomendo este outro artigo, para se aprofundar nessa questão.
Para contribuir com caminhos, trago aqui alguns pontos que podem auxiliar na sua jornada:
- Não se compare aos demais: cada um sabe onde aperta seu calo;
- Enquanto casal e família, procure afinar os seus valores, pois é esse o maior tesouro e o norte de vocês;
- As “fórmulas mágicas” ou “receitas prontas” não se aplicam a todo mundo. Até mesmo a receita, para dar certo, depende da farinha, do forno, do fermento, do clima, da forma, não é mesmo?
- Não se sinta culpado ou culpada: a experiência de educar uma criança é desafiadora mesmo, por isso, a importância de uma comunidade para cuidarmos dela juntos;
- Procure a ajuda de uma rede de apoio: o suporte emocional dos pares é importante para trocas;
- Encontre um profissional sério e ético, que seja capaz de acolher a sua dor, seus sentimentos e suas inseguranças. Para isso, conte comigo!
Mesmo com as transformações que a instituição “família” vem atravessando, ela segue sendo um seio de formação do ser humano, o qual tem papel central na construção do indivíduo, da sua subjetividade e na forma que este se coloca no mundo. Por isso, as reflexões sobre a parentalidade e sobre a educação das crianças são igualmente fundamentais para que o elo entre os membros seja fonte de impulso para que cada um viva seu colorido, no seu tom, em harmonia com os outros. E sem rótulos!
Para finalizar nossa conversa por aqui, gostaria que apreciasse as palavras de Fernando Pessoa, em seu poema “Quando as crianças brincam”. Deguste!
Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.
Fernando Pessoa
Referências:
https://madinbrasil.org/2021/10/ressonancias-da-re-medicalizacao-e-as-familias-contemporaneas/
Alves, Rubem – O tempo e as jabuticabas.
Heidegger. M. (2003). Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária
Pessoa, Fernando (1995) Poesias. Lisboa: Ática,15ª ed.