Sobre acolher limites: repensar nosso tempo, em um mundo que não para de nos acelerar

“vazio agudo

ando meio

cheio de tudo”

Paulo Leminski

Escrevo este artigo após um turbilhão de pensamentos, reflexões, emoções. Atravessada pelas experiências das pessoas que atendo, pelas minhas próprias vivências até aqui e olhando para o mundo no qual estamos circunscritos, entendo ser necessário caminharmos para uma conversa franca sobre a condição humana moderna. Falar sobre o tempo e o sentimento de perdê-lo a todo momento. Sobre estar sob a batuta de uma aceleração forçada para chegar a um destino que não sabemos qual é. Sobre uma exaustão que se tornou nossa fiel companheira.

Esse poema do Leminski diz muito a respeito dessa questão existencial: um certo ar de empanturramento e ao mesmo tempo que também traz uma sensação de incompletude, de ausência de algo que não nos preenche como gostaríamos. 

É tanto “ter que”, que o espaço para manifestarmos a vida que habita em nós é cada vez mais curto, mais enquadrado, mais distante. Em um artigo de 2016, a jornalista Eliane Brum já cantava essa bola. Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo virou a condição humana dessa época.” 

Quando leio essas palavras e penso no existir, nas “caixinhas” para as quais querem nos empurrar, a imagem que me vem à mente é a do Coelho Branco, da história “Alice no País das Maravilhas”. Ele está permanentemente atrasado, correndo, frenético, adiante. Símbolo de uma sociedade pautada na produtividade que não tem começo, nem fim. Apenas segue. 

Correndo para quê? Por quê? 

As pessoas têm narrado a mim, e visualizo também o discurso em depoimentos nas redes sociais, a sensação generalizada de estafa pela eterna falta de tempo. O trabalho que engole nossas vidas, mas que é glamourizado a todo instante, como se não pudéssemos ou nos fosse permitido ousar diminuir o ritmo, ou colocar as nossas atividades profissionais dentro de um limite, encarando-as como apenas uma das tantas dimensões que a vida nos apresenta.

Trago aqui um testemunho pessoal para vocês. Venho de uma família em que o trabalho sempre foi visto como um bem precioso, o qual jamais devemos tratar com desrespeito. Foi nessa toada que  também abracei a glamourização de produzir em excesso, de usar meu carro até o limite da honra para trabalhar, dirigindo, mesmo cansada, por rodovias. Já estive na ativa 15 horas diárias, em um movimento que não se findava. Desse tempo, “ganhei” herpes zoster, canal em dois dentes por tensão da ATM e uma panturrilha rasgada em 17 cm. E pasmem, não me sentia fazendo nada mais que o normal.

Retomo Eliane Brum, porque naquele mesmo artigo, ela reflete sobre o corpo que não acompanha o relógio sempre adiantado. “Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Porque só dopados para continuar exaustos-e-correndo.” Quando me vi, ainda que forçosamente, impossibilitada pela lesão na perna de continuar na mesma velocidade, pude refletir sobre mim, minha vida, minhas escolhas. Me questionei sobre qual é o meu limite. Como aprendo quais são? Alguém precisa me dizer? É um pensamento egoísta pensar em limites?

Pois é,  nesse momento percebi que o mundo continuava o mesmo sem meu frisson, sem minha correria louca. Sim, a máquina segue funcionando. E esse é o ponto do capitalismo: ele continua apesar, com ou se você. 

A partir dessa reflexão, comecei, então, a mergulhar no que é meu de mais próprio e vi, mais do que nunca, a importância de me conhecer e validar minhas sensações, meus sentimentos, minhas emoções! Ao legitimar o que sentimos, inclusive e principalmente a dor de desrespeitar nossos limites,  podemos nos acolher, entender, cuidar e não se render à lógica “não é nada” ou “só vou tomar um remedinho que passa”. Não precisamos nos dopar, seja do que for.

“Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento” –

Clarice Lispector

Acolhendo pessoas, venho observando essa busca por se entender, como se colocar na caixa social, afinal, as pessoas “seguem seguindo”. 

O que proponho é que este formato de vida é algo que ultrapassa o entendimento, portanto, para conseguirmos nos acolher e virar a chave, é necessário usarmos todas as formas de sentir: nossa percepção, nossos sentidos, nossas emoções. É a partir desse espaço que convido as pessoas que atendo a elaborarem e conduzirem as suas narrativas, de modo a respeitarem o que querem e podem oferecer, sem que precise haver feridas emocionais, físicas, mentais.

Refletir sobre as crianças e a parentalidade em nosso tempo

Pegando como pano de fundo esse quadro acima, aproveito também para falar sobre um recorte que faz parte da minha atuação enquanto psicoterapeuta, no trabalho de orientação de pais. Afinal, tanto o desenvolvimento das crianças quanto a experiência da parentalidade são atravessadas justamente por este contexto social.

Em um dos atendimentos, uma paciente me indicou o livro da Anne Helen Petersen, “Não aguento não aguentar mais”, que fala sobre como temos vivido intensamente a naturalização do  burnout. Dessa leitura, destaco um trecho que me chamou a atenção: 

“Então, ser adulto- e, consequentemente, completar sua lista de tarefas- é difícil porque viver no mundo moderno de alguma forma consegue ser, ao mesmo tempo, mais fácil do que nunca e absurdamente complicado.” (página 20)

Quando as gerações dos anos 80 e 90 para cá foram orientadas pelos profissionais de saúde mental e de educação de que as crianças precisavam ser felizes, incondicionalmente felizes, protegidas das frustrações diárias – afinal, a vida já seria dura com ela – o que vemos hoje? 

Pessoas adultas que não conseguem lidar com desapontamentos, seja porque foram excessivamente preservadas, seja porque não desenvolveram a capacidade de ser perceber como seres de limites. De carne, osso e sentimentos plurais, complexos, contraditórios.

E o que isso tem a ver com o tema? Observo que essa educação e esses valores sociais de que criança é um ser alheio ao todo, descolada do mundo social, e de que a vida adulta é necessariamente um fardo, cria um grande abismo entre o que se sente e o que deveria sentir, entre o que percebe e o que se é.

As coisas vêm mastigadas, dadas, enlatadas e, agora, digitalizadas. Mais do que nunca os algoritmos, a inteligência artificial, as máquinas nos dizem o que devemos pensar, sentir, fazer, gostar, desgostar. 

Pensando ainda na Alice, uma passagem que  me salta aos olhos é quando ela está perdida e pergunta ao Gato Risonho: 

“Estou perdida! Para qual lado devo ir?” 

O gato responde: “Para onde queres ir?

Ela diz: “Não sei!”

O Gato, então, retruca: “Se não sabes para onde quer ir, qualquer caminho serve.” 

É assim que muitos se sentem. O que devo fazer? Outro MBA? Mudar de emprego? Casar? Educar meus filhos nesta ou naquela escola? Coloco limites nos outros e nas crianças ou sigo a onda? 

“O conhecimento pronto estanca o saber e a dúvida provoca a inteligência.” Vigostki, 1987

Ao apontar essa questão, Vigostki nos convida a pensar sobre a importância da dúvida, dos questionamentos, das experiências vividas para darmos novos sentidos às coisas!

Acolho pais que procuram orientação na educação de seus filhos, pois vêem-se presos entre “ser o pai que tiveram e os pais que querem ser”. Modelos como “quarto arrumado, lição de casa feita e em ordem, brincar sem bagunçar” têm gerado um verdadeiro impasse nas famílias. Eu reclamo ou deixo livre? Como fazer? Quero ser próximo aos meus filhos, mas como defino meu papel de pai e de mãe? Qual o prejuízo dessa bagunça? Qual o prejuízo de deixar meus filhos seguirem mais soltos? Neste artigo aqui, falo mais sobre essa angústia da parentalidade moderna, se você quiser se aprofundar no tema. 

Novamente, a busca pela caixa social que vai nos dizer a saída. Temos uma série de autoridades nos dizendo exatamente como agir, mas ao tomarmos consciência disso, dos nossos limites e da importância de trazer para a educação das crianças a noção de que eles existem e podem ser por cada um e cada uma entendidos, definidos e compartilhados, encontramos uma possibilidade que fazer com essa nova geração não entre no mesmo looping lutamos para sair agora.

Entender até onde vamos, para irmos onde quisermos  

Chego até aqui sentindo que, mesmo sem ter respostas prontas – até porque não acredito em fórmulas mágicas e fabricadas, – a própria reflexão sobre essa correria, sobre o tempo destemperado e as imposições de um mundo competitivo nos apresenta já é um passo no sentido de ressignificar nossas histórias e nos acolhermos enquanto seres com infinitas possibilidades, com limites saudáveis e humanos para colocar no mundo nossos coloridos. 

Por isso, deixo aqui uma outra grande citação da Clarice Lispector, que abarca esse pulsar pela expansão da vida, para além do trabalho, para além do cumprimento de obrigações.

 “Liberdade é pouco, o que desejo ainda não tem nome.”

Clarice Lispector

Que o aconchego que sinto com essas palavras também reverbere para você.

Abraços e até a próxima.

Carol Freire

 

Referências

https://ofuturodascoisas.com/geracao-perdida-2-0/

https://cientistaqueviroumae.com.br/como-educar-com-amor-quando-todo-mundo-esta-sofrendo/

https://super.abril.com.br/sociedade/livro-da-semana-nao-aguento-mais-nao-aguentar-mais-de-anne-helen-petersen/

https://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2021/09/e-millennial-e-passou-por-burnout-mande-seu-relato-a-folha.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/09/entenda-por-que-o-burnout-ameaca-definir-a-vida-de-quase-todos-os-millennials.shtml