“Não se trata só de prédios, salas, quadros, Programas, horários, conceitos…Escola é sobretudo, gente Gente que trabalha, que estuda Que alegra, se conhece, se estima.”
Paulo Freire
Qual o tamanho da escola? Quais quarteirões da vida ela ocupa? A escola carrega uma dimensão que o espaço físico não limita. Ou, ao menos, não deveria limitar. No ambiente escolar é possível vivenciar e observar a intersecção de vários aspectos da vida humana que são responsáveis pelo seu desenvolvimento de maneira integral. A escola é o espaço da socialização, do coletivo, da formação, da descoberta, do encontro, da possibilidade, do conhecimento a respeito de si, do outro e do mundo. No entanto, sabemos que a educação e o ensino são atravessados por desafios históricos e estruturais há décadas em nosso país.
Diante desse contexto desfavorável e dos impactos recentes causados pelos dois anos de pandemia, de isolamento e de afastamento das escolas, trago este artigo para que possamos pensar, juntas e juntos, sobre os novos desafios da educação e de como é fundamentar abarcar a escola em sua dimensão para além do conteúdo, superando, assim, os limites dos muros e das grades curriculares. Então, convido vocês para esta leitura e para compartilharem comigo as ideias que, eventualmente, possam surgir a partir das provocações colocadas aqui. Vamos lá?
Educação no pós-pandemia
Para começar nossa conversa, gostaria de trazer alguns dados relevantes sobre a questão da educação no momento histórico que temos atravessado. O UNICEF, desde o início da pandemia, faz alertas em relação ao aumento da exclusão escolar ao redor do mundo.
Por aqui, em novembro de 2020, já havia mais de 5 milhões de meninas e meninos sem acesso à educação – número semelhante ao que o Brasil tinha no início dos anos 2000.
Segundo levantamento do Instituto Unibanco e Insper, os alunos do 3º ano do Ensino Médio tiveram uma perda de aprendizagem estimada em 74%.
Mesmo com todo o empenho e dedicação das professoras e professores e das instituições de ensino na transição para o ensino à distância, muitos alunos não tiveram acesso adequado à educação, em razão das barreiras tecnológicas, da falta de internet, de computadores e das dificuldades de organização das próprias famílias diante das novas dinâmicas de trabalho e convivência impostas pela pandemia.
Prova disso é um estudo publicado, em outubro de 2021, pelos pesquisadores Guilherme Lichand, Carlos Alberto Doria, Onicio Leal Neto, da Universidade de Zurich, e João Cossi, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no qual dados mostram que, no estado de São Paulo, os estudantes aprenderam, nas aulas online, apenas 28% do que teriam aprendido em aulas presenciais. Além disso, o risco de abandono ou evasão escolar mais que triplicou.
A crise sanitária causada pela Covid-19 desencadeou crises sociais e econômicas e, neste sentido, a educação, tão sucateada e colocada em segundo plano pelas administrações públicas, foi ainda mais afetada em suas diversas camadas.
Sem a escola, sem as aulas presenciais, sem esse espaço de integração, as crianças e adolescentes, principalmente os mais vulneráveis, viveram uma experiência de ausências. Ausência de acesso à educação, à saúde mental, à proteção e à nutrição – 47,8% das crianças brasileiras vivem na pobreza e muitas dependem das escolas que frequentam para se alimentarem.
Como falei no início deste artigo, o espaço físico da escola comporta muito além de cadeiras, mesas e conteúdos. O espaço da escola é também um tempo da própria experiência humana, da vivência do mundo e de suas múltiplas dimensões.
A escola é o básico sem o mínimo
Antes de falar sobre a escola ser extensão e extrapolar muros, gostaria de reforçar que a educação, sendo um direito básico, acaba por não ter o mínimo necessário para seu funcionamento.
Um exemplo recente é da compra de kits de robótica, no valor de R$26 milhões, pelo MEC, em abril deste ano, para escolas de pequenas cidades de Alagoas que sofrem com a falta de infraestrutura básica, como falta de salas de aula, de computadores, de internet e até mesmo de água encanada.
Vejo que o discurso é um – moderno e tecnológico -, mas a realidade é outra – precária e carente. Como um ambiente sem as condições mínimas pode dar conta de abrigar alunos, professores, gerar conhecimento, formar pessoas e estimular o aprendizado?
A escola e seu papel social
Bem, depois de olhar um pouco para os efeitos da pandemia na educação e na vida de crianças e adolescentes, quero me aproximar do papel social da escola. Aprendizagem e conteúdo precisam ser resgatados após esses dois anos de afastamentos e barreiras tecnológicas. Mas, além do que está programado para o currículo escolar, é urgente resgatar a visão da educação como instrumento de transformação social e de combate às desigualdades.
No ambiente escolar, aprende-se a ler, a escrever, a somar, a dividir. Tanto nos cadernos e nos livros de matemática como na própria experiência de contato com o outro, com o coletivo, com o plural dos seres humanos. O espaço de aprendizagem é o espaço de construção. No entanto, é preciso que esse ambiente tenha condições materiais e emocionais para que seja, de fato, um ambiente seguro, de bem-estar e de convivência.
É a partir das interações e aprendizados – de qualidade – na escola que crianças e jovens podem aprender valores e visões de mundo capazes de ajudar a humanidade a trilhar novos caminhos e a lidar – com menos egoísmo e mais sentido de comunidade – com as crises que colocam a nossa existência em cheque, como, por exemplo, as questões climáticas.
No convívio escolar é possível ter acesso às ferramentas para se desenvolver e se reconhecer enquanto indivíduo agente no mundo. Isso, claro, quando a escola oferece e possibilita essas ferramentas e esse crescimento.
Fracasso escolar e a ideia de Darwinismo Social
“Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.”
Paulo Freire
Como falei acima sobre as condições da escola e seus reflexos na vida dos estudantes, gostaria de, neste momento, discutir sobre teorias e ideias que se arrastam ao longo da história, mas que são superficiais e sugerem uma naturalização que beira a ingenuidade.
Estas ideias se baseiam na seletividade natural e são pautadas no Darwinismo Social como justificativa para o fracasso escolar, colocando-o como resultado da carência do meio sociocultural de crianças pobres.
Ou seja, as crianças carentes são colocadas como centro da problemática e ocupam esse lugar por duas razões em geral: por conta das dinâmicas familiares nas quais estão inseridas (sem os estímulos adequados para o aprendizado) e por uma marcação genética (teorias médicas que envolvem higiene mental e correção dos desvios).
Por esse ponto de vista, as crianças e jovens com marcadores sociais de pobreza são considerados os únicos responsáveis pela reprovação e evasão escolar. Mas isso é verdade?
Ao meu ver, essa visão faz parte de uma estratégia política que transfere as responsabilidades do Estado para o sujeito, desconectando a precariedade da educação do poder público e conectando-a exclusivamente à patologização do aprendizado e às crianças carentes e suas famílias.
Para a grande mestra e uma referência para mim, psicóloga e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP), Maria Helena Souza Patto, é preciso desconstruir mitos, preconceitos e ideologias cientificamente legitimadas, como o Darwinismo Social, que deturpam o processo educativo e culpam o sujeito e a sua história de vida pelo fracasso escolar.
Por isso, chamo atenção para que pensemos para além do senso comum, das naturalizações e dos estereótipos que insistem em ocupar as cabeças e discussões, mas que são argumentos rasos.
Os desafios da escola e da educação devem ser compreendidos dentro de uma perspectiva política e social e não individual. A culpabilização pelo fracasso escolar precisa considerar a máquina, o sistema, e não deve recair somente sobre os indivíduos.
As fraturas da educação
Então, para finalizar este artigo, compartilho uma leitura de uma turma de pesquisadores potentes, que trabalham, estudam sobre educação e que abordam, justamente, as trincas desse sistema de ensino que adoece em todos os sentidos. No livro “Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação”, os autores trazem à tona as dores, denúncias e angústias experienciadas em sala de aula (ou nas salas virtuais).
Os profissionais levantam questões como a reinvenção tecnicista, a “neutralidade”, o adoecimento docente e discente e a pseudoformação e se posicionam de forma contundente e resistente contra todas as formas de impedimento e alienação colocadas, há anos, no caminho de uma prática educacional e de uma escola libertadora e emancipatória.
Sem dúvidas, desfazer os nós que aprisionam a educação está entre os principais desafios da escola como um espaço que ocupa mais que um prédio e que está para além do conteúdo. Reivindicar educação de qualidade é um dever e um direito.
Somente por meio de um pensamento livre, de uma expressão questionadora e de um ato coletivo é que poderemos evoluir e caminhar enquanto humanidade. Como bem escreveu Rubem Alves, “Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.”
Espero que o artigo tenha feito sentido por aí!
Até o próximo!
Fontes: