Etarismo e as diversas formas de se julgar a mulher

Todos vamos envelhecer….

Querendo ou não, iremos todos envelhecer.

As pernas irão pesar, a coluna doer, o colesterol aumentar.

A imagem no espelho irá se alterar gradativamente e perderemos estatura, lábios e cabelos.

A boa notícia é que a alma pode permanecer com o humor dos dez, o viço dos vinte e o erotismo dos trinta anos.

O segredo não é reformar por fora.

É, acima de tudo, renovar a mobília interior: tirar o pó, dar brilho, trocar o estofado, abrir as janelas, arejar o ambiente. Porque o tempo, invariavelmente, irá corroer o exterior

[Adélia Prado – Erótica é a Alma]

 

Tenho 45 anos e estou querendo brincar com as cores do meu cabelo. Quem sabe umas mechas rosas? Ou talvez realizar o desejo de pintar os fios à la Rita Lee, nos anos 80? Sou mulher, branca, tenho 45 anos, e os cabelos coloridos poderiam mesmo fazer parte dos meus planos? O que as pessoas vão achar? ‘Ela não tem noção do ridículo, achando que  ainda é mocinha?’. Antes que eu seja julgada por pintar o cabelo e ter outros cuidados, quero me colocar como uma mulher vaidosa. Gosto de brincar com meu cabelo, seja em cortes, seja em cores, e tenho uma rotina de cuidado com a pele, mas isso não me faz negar o processo de envelhecer e de entendê-lo em sua complexidade de dimensões e de possibilidades. 

 

Trouxe este exemplo para iniciar o texto, porque foram pensamentos que me atravessaram nos últimos dias e os quais se conectaram com as falas de mais mulheres durante os atendimentos, me levando a investigar mais sobre o quanto o etarismo ceifa e restringe experiências frutíferas com as nossas próprias velhices. Então, no oposto de uma visão simplista, meu convite aqui é para um mergulho profundo sobre o ser mulher envelhecendo no século XXI; é para a reflexão sobre o ‘não poder’ envelhecer, o que significa ir além da aparência física e contra o sentido de ‘universalização’ do envelhecimento. 

 

Envelhecer é, em geral, algo considerado negativo, sinônimo de desleixo, de “entrega dos pontos”, vide o quanto somos massacradas pela indústria das mais diversas áreas: farmacêutica, cosmética, fitness, afetiva e do mundo do trabalho, para parecer sempre novas e desejáveis.  Nas raízes dessa questão está o fato de que a nossa sociedade ‘jovemcêntrica’ supervaloriza o novo. Impulsionado pela lógica do mercado, o novo seria o que tem utilidade, para produzir, para gerar riqueza, para criar, para mudar, para contribuir com o desenvolvimento. É como se houvesse uma data de validade enquanto indivíduos. No entanto, embora o envelhecimento seja algo natural, viver a velhice não é igual para todos e todas, mas sim uma experiência que se manifesta de formas diferentes, a depender de gênero, raça, classe social, sexualidade e outras intersecções.

 

“Se a gente não mudar essa forma de enxergar a velhice, estamos condenados a viver a maior parte da nossa vida como seres inúteis e descartáveis, mortos simbolicamente.”

Mirian Goldenberg – Antropóloga

 

Mas o que é envelhecer? E o que é envelhecer para as mulheres?

 

Segundo as Nações Unidas, a proporção de pessoas com mais de 60 anos será de 1 para 4, em 2050. Com o objetivo de gerar melhores políticas para esse cenário, a Organização Mundial da Saúde declarou os anos de 2021 a 2030 como a Década do Envelhecimento Saudável, propondo ações que possam acolher esta população. Entre as iniciativas, está a abolição dos estereótipos e preconceitos relacionados à idade – etarismo, idadismo, ageísmo são sinônimos.

 

Sendo assim, para começar o nosso mergulho, acredito ser importante conceituar o que significa envelhecer. Na literatura científica, existem três principais abordagens para a compreensão do envelhecimento: a biológica/física; a social/antropológica; e a psicológica. Pela ótica biológica, este processo é visto como uma perda gradual de funções e das capacidades do organismo, que por sua vez, se torna mais vulnerável a doenças. Porém, isso não considera aspectos culturais e as convenções sociais associadas à idade, o que faz parte da análise social e antropológica. Já pela perspectiva psicológica, de forma resumida, o envelhecimento é entendido como a etapa do desenvolvimento humano em que há um “delicado equilíbrio entre vantagens e limitações” (Neri, 2004, p.70), levando em conta a subjetividade dos seres. Como traz a pesquisa de Valeska Zanello, Lívia Campos e Silva e Guilherme Henderson, sobre Saúde Mental, Gênero e Velhice, a ideia de envelhecimento biológico, no entanto, invadiu também a percepção cultural ocidental, considerando que, à medida que o tempo passa, somos encarados como menos úteis e menos capazes. Quando essa mentalidade se cruza e se funde ao patriarcado, surge mais uma forma de oprimir os corpos, as subjetividades e as narrativas femininas.

 

Enquanto para a sociedade, homens de 40 ou 50 anos que fazem tatuagens ou empreendem são vistos como ‘descolados’, ‘corajosos’, ‘modernos’, mulheres que se lançam em novas jornadas – da cor do cabelo a uma nova formação – estão sob um tribunal implacável. Somos, ao longo da vida, levadas a acreditar que o acúmulo dos anos nos autorizam ou não para fazer o que queremos e que é precisamos fazer todo o possível para evitar ‘parecer velha’,  revelar a idade ou assumir os nossos brancos – em todos os sentidos.

 

“Envelhecer não é para maricas”

 

Como apaixonada e estudiosa do desenvolvimento humano, sei que  envelhecer faz parte do ciclo da vida, mas não menos importante do que essa compreensão é a consciência das amarras e das armadilhas que o envelhecer traz para o cotidiano de nós, mulheres. Seja em ofertas de produtos de beleza (com produtos de última geração para retardar o envelhecimento da pele, do cabelo, do corpo e até da nossa vagina), seja em mudanças de mentalidade, em atividades físicas específicas para 40+ e toda a sorte de técnicas, receitas, dicas e magias, somos encurraladas para preservar o aspecto jovem – e pior, se envergonhar de qualquer vestígio da passagem do tempo, do ganho de sabedoria, da maturidade como potência. Como diz Carol Assunção, doutora em Linguística pela UFMG, a convenção é a de que a mulher precisa sempre dar ‘prazer aos olhos dos outros’. E então, me pergunto: e o prazer da mulher, o olhar para si mesma, onde ficam?

 

“Ao invés de valorizarmos a experiência sobrevinda com a idade, a “maturidade”; reduzimos e sufocamos a memória e os projetos dos idosos, roubamos-lhes a confiança, as possibilidades de caminho e de sentido. Também nos recusamos a nos reconhecer no velho que seremos” 

[Simone de Beauvoir – A velhice]

 

Como comentei no início do texto, tenho recebido durante os atendimentos muitas falas sobre a questão da idade, de pacientes de 30 ou de 50 anos. Uma delas me relatou que foi a aula de balé e “lá tinham meninas de 14 e 15 anos, desenvoltas, desinibidas. Me senti uma velha, travei!” Outra, que é mãe, narrou “já estou velha para voltar ao mercado de trabalho, fiquei com as crianças até crescerem um pouco.

 

Aí, vão me perguntar onde eu estive esse tempo todo, e se eu responder ‘maternando’, não vão me querer mais.” No mercado de trabalho, o etarismo, somado ao machismo, é ainda mais perverso. Homens grisalhos ganham os louros do poder e da senioridade; mulheres mais velhas, grisalhas, são categorizadas como desatualizadas, lentas e atrasadas. Em uma pesquisa divulgada pela Exame, 70% das mulheres já se sentiram não ouvidas por causa da idade e quase metade afirmam que receberam comentários negativos em relação à própria idade.

 

“Nascer é uma possibilidade

Viver é um risco

Envelhecer é um privilégio!” 

[Mario Quintana]

 

Poderia ficar aqui narrando diversas vivências, mas a questão é que envelhecer vai tomar a todos e todas nós, porque faz parte da nossa condição biológica humana. Mas o processo de envelhecimento e a vivência deste processo passam pelas dimensões culturais, sociais, raciais, econômicas e de gênero. Neste sentido, envelhecer é um privilégio. Em um recorte de raça, mulheres negras são atravessadas por preconceitos sobrepostos, do machismo ao racismo, alcançando a ‘velhofobia’. Como traz a escritora, psicanalista e feminista Joice Berth “enquanto mulheres brancas lamentam serem retiradas do ‘trono da beleza’ por conta de rugas e cabelos brancos, amplamente discutidos nas rodas de conversa sobre etarismo, as mulheres negras, com a velhice precoce sendo consumada pela idade avançada, experimentam o agravamento do abandono e da rejeição que caracteriza sua jornada desde o nascimento.’

 

Assim, para além de uma visão ‘corpo-saúde-doença’, é preciso considerar se as condições econômicas e socioculturais oferecem ou não suporte para um envelhecer de qualidade, qualidade esta física e psicossocial. É preciso ressignificar não somente o sentido do envelhecimento, mas também é fundamental que isso seja acompanhado de políticas para que grupos minorizados, seja por raça ou por sexualidade, possam ter acolhimento e oportunidades de viver bem, com dignidade, abraçando as suas décadas para florescer como quiserem.

 

Romper dicotomias para todas as fases da vida

 

Ao me debruçar sobre o envelhecimento das mulheres, me recordei de um dos livros que marcam profundamente a construção do meu repertório, “Ciranda das Mulheres Sábias”, da psicóloga junguiana Clarissa Pinkola Estés. No conto ‘A casa da floresta’, o paradoxo de que a sabedoria  e da juventude coexistem dentro de uma mesma mulher, ao longo da vida, nos ajuda a romper com dicotomias e a enxergar que “os atributos paradoxais do que é grande são principalmente ser sábia e ao mesmo tempo estar sempre à procura de novos conhecimentos; ser cheia de espontaneidade e confiável; ser ousada e precavida; abrigar o tradicional e ser verdadeiramente original.” 

 

A reflexão que compartilho neste artigo com vocês é uma  provocação para que nós possamos buscar uma vida plena, em nossos próprios corpos, sem rusgas com as rugas do tempo – ou que o cuidado com nossas curvas e formas parta consciência de si e não de uma opressão imposta pelos olhos alheios. Para que envelhecer seja um processo digno e respeitado em todas suas nuances e realidades, para que todas as mulheres se sintam bem consigo mesmas, mesmo se isso não atender a uma expectativa que vem de fora. ‘Envelhecer é uma loucura!”, disse Rita Lee. Que sejamos abastecidas pela cor de fogo dos seus cabelos de antes, pelos seus fios brancos de agora, e pelo seu quê de rebeldia eterno, vivendo nossas idades com todas as dores e todas as delícias – e sempre sem vergonha.

 

 

“Depois que eu envelhecer

Ninguém precisa mais me dizer

Como é estranho ser humano

Nessas horas de partida

Ah ah ah, é o fim da picada

Depois da estrada começa

Uma grande avenida no fim da avenida

Existe uma chance, uma sorte, uma nova saída

Qual é a moral?

Qual vai ser o final dessa história?

Eu não tenho nada pra dizer, por isso digo

Que eu não tenho muito o que perder, por isso jogo

Eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho

Rita Lee – Coisas da Vida