Mulheres e (im)possibilidade de sermos possíveis

O dia 8 de março passa, as campanhas e pautas sobre as lutas das mulheres esfriam, e o mundo segue seu percurso patriarcal. Mas como mulher, como psicóloga que acolhe os dilemas femininos, só é possível seguir atenta e inquieta. Atenta às nuances da vida cotidiana, às matizes que compõem a cena, às palavras que tomam as conversas. Inquieta com o que percebo.

Nesses acolhimentos, ouço mulheres diversas, casadas, solteiras, com filhos, sem filhos, de diferentes contextos sociais. Embora tenham vivências e desafios singulares, percebo que em suas falas existe sempre um ponto comum: o sentimento de impossibilidade. Como isso soa para você aí do outro lado?

Nossa premissa feminista é: eu tenho valor.

Chimamanda Ngozi Adichie


Bem, a sociedade insiste em nos dizer que existe apenas um caminho para nós. Um único jeito de viver. Por exemplo, algumas mulheres têm narrado que ao se tornarem mães, outras dimensões da vida parecem automaticamente se anular. Elas precisam renunciar à carreira, abandonar outros desejos e incorporar um comportamento esperado, afinal, “uma mãe não pode fazer tal coisa”. 

Quando se fala em maternidade, aliás, a dimensão profissional é um exemplo claro do que fica em xeque. Um estudo da FGV mostra que, após 24 meses, quase metade das mulheres que se tornam mães perdem seus empregos. Outro estudo aponta que mulheres executivas sem filhos superam o número de homens executivos que são pais, indicando que a escolha de ser mãe ou não é um fator para alçar voos aos cargos de gestão e liderança.

Isso nos leva a um dos pontos fundamentais da conversa, que é a concepção do cuidado como uma função, um papel a ser cumprido pela mulher, enquanto homens podem exercer suas profissões e projetos de vida sem o peso das duplas ou triplas jornadas. É no ambiente doméstico também que vemos o trabalho com a casa como uma atividade essencialmente feminina, uma atividade sem valorização e sem nenhum reconhecimento. “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”, nos alerta a filósofa e escritora Silvia Federici.

Sobre isso, me volto às palavras de outra pensadora, Helena Hirata, para nos ajudar a contextualizar como a sociedade enxerga o trabalho para homens e mulheres: 

 

“A noção de divisão sexual do trabalho tal como conceitualizou Danièle Kergoat se baseia em dois princípios: primeiro, o trabalho do homem é diferente do trabalho da mulher, mulheres e homens estão alocados em lugares diferentes no mundo do trabalho; segundo, o trabalho dos homens é valorizado, considerado superior ao trabalho das mulheres.”

Helena Hirata, filósofa brasileira, em entrevista para Democracia e Mundo do Trabalho


Há também aquelas também que fazem a escolha de uma carreira sólida, desafiante e que resolvem experimentar a maternidade um pouco mais tarde do que nos habituais 30 anos. A essas mulheres, questiona-se como podem “abrir mão” de uma carreira para ser mãe “tarde”? Em outros casos, mulheres que não estão casadas, e que estão felizes assim, são vistas, então, como aquelas que devem cuidar da família, dos amigos e, claro, ter uma carreira impecável, porque não têm filhos ou marido. Se uma mulher decide empreender, existem certos negócios que são “de mulher” e outros que nem deveriam ser desbravados.

Para muitos pode parecer um “mimimi”, mas já parou para pensar que sociedade por um lado incentiva, fortalece e traz no seu imaginário o “Girl Power”, mas por outro lado, ainda impõe as amarras de estereótipos, como a mulher amélia, ou a mulher fria e ambiciosa que só pensa no trabalho? Ou solteirona que não tem um projeto de vida próprio?

Ouvir sobre essas angústias me faz perguntar: por que ser mulher implica em fazer uma escolha [teoricamente] simples, fácil e imutável? Mulheres não podem ampliar seus desejos e dimensões? Não podem mudar de ideia, experimentar, gostar, não gostar, reescrever a própria história? 

É como se houvesse forças que nos dizem “é até aqui que você pode” escolher, viver, explorar. Forças que nos enquadram e limitam a fluidez de nossa existência. No entanto, o que vejo são mulheres buscando o oposto, vejo a mulher contemporânea engajada em experimentar a pluralidade! Nós podemos ser mulheres, mães, esposas, professoras, astronautas, engenheiras, técnicas, e tantas outras formas de ser e existir que não cabem em apenas uma caixinha.

“Não quero perder a essência. Eu não sou só mãe”

Ingrid Silva, bailarina, coreógrafa, escritora, em entrevista ao Universa

 

Dia desses me deparei com a história da Ingrid, e suas palavras casavam justamente com essas reflexões sobre os dilemas femininos. Ingrid é uma mulher com uma carreira de bailarina internacional e ficou mais conhecida depois de pintar as sapatilhas de uma cor mais próxima a de sua pele, em uma de suas ações contra o racismo. Ela teve sua primeira filha durante a pandemia, e em certo momento, decidiu voltar ao trabalho. Retomar a dança, os seus projetos e ser mãe. Na entrevista, Ingrid reforça que não quer esquecer quem ela é. A dança de somar, não de subtrair.

Também me lembro da então deputada estadual Manuela D’Ávila amamentando a sua bebê durante um evento no plenário. Depois da foto viralizar, ela declarou: “A política é masculina e machista, a política não tem espaço para as mulheres, a política não tem espaço para o que nos diferencia dos homens, a política não tem espaço para a ingenuidade e para a alegria das crianças, não tem espaço para a naturalidade com que conciliamos nosso trabalho e nossas lutas com nossos bebês”. Entendo Manu e Ingrid como exemplos de reivindicação pelo direito de sermos múltiplas e de sermos capazes, não no sentido neoliberal, de que podemos dar conta de múltiplas funções e ainda sorrir no fim do dia. Mas sim no sentido existencial: não precisamos nos confinar a um único papel!

É claro que as estruturas sociais precisam mudar para que as mulheres possam viver suas experiências em coexistência. O mercado de trabalho, os espaços de poder, a casa, a família (seja com filhos ou não) devem possibilitar a responsabilidade compartilhada, a equidade de participação, voz e decisões.

Mas é também importante que possamos reconhecer nossas dimensões, nos conectarmos com nossos desejos, escrever novas trilhas e desbravar percursos que nos façam sentir vivas. Assim, acredito que a psicoterapia seja um processo bastante potente para que mulheres (re)encontrem em si mesmas as chaves que destravam portas, janelas, cadeados, num bonito movimento de acolhimento e de elaboração da relação consigo e com o mundo.

Parafraseando Simone de Beauvoir: que a liberdade seja nossa substância para sermos todas as nossas possibilidades. 

E você? Se identifica com essas sensações e sentimentos? Gostaria de pintar diversos coloridos? Me envie uma mensagem e vamos conversar.

Abraços,

Carol Freire