Psicoterapia para meninos e um novo bordado para a masculinidade

 

Meninos são meninos, não confunda com homem.

Meninos quando você mais precisa eles somem.

[Projota]

São muitos anos de atendimento clínico, são muitos anos estudando o desenvolvimento infantil. Experiência que me dá um bom histórico. Por aqui, posso dizer que as meninas chegam à psicoterapia por volta dos nove ou dez anos, meninas que, muitas vezes, são vistas como “agitadas”, “rebeldes” ou “impacientes”. Pais e escolas buscam adequá-las desde cedo para que aprendam a cuidar de suas emoções e relações, para que se tornem adultas mais seguras. Já os meninos, geralmente, aparecem na adolescência, quando começam a romper laços familiares e a desafiar os valores e as expectativas dos pais. 

Fato é que meninos e meninas, homens e mulheres vivenciam a relação com as emoções e com os sentimentos de formas bastante diferentes. Socialmente, cada gênero é ensinado a lidar – ou não – com a sua subjetividade e com seus atravessamentos de uma maneira: mulheres são estigmatizadas como frágeis e sentimentais; homens são os seres fortes e inteligentes. Se por um lado isso infantiliza, diminui e violenta a mulher, por outro, homens têm sufocadas, desde a infância, as suas possibilidades de experimentar o colorido de sentimentos e emoções que permeiam toda e qualquer existência humana, restringindo à raiva a manifestação mais essencial do que é a “essência masculina”. 

Em meus estudos sobre masculinidades, noto o quanto homens adultos enfrentam a relação com o campo emocional e afetivo com extrema dificuldade. Quando colocamos uma lupa sobre essa questão nos atendimentos, percebemos a profunda falta de acesso às emoções, a dificuldade de nomeá-las e compreendê-las, e não apenas de senti-las. Muitas vezes, o atendimento de homens adultos dura pouco e perde o sentido, porque, para eles, falar de algo tão profundo torna-se vago e até mesmo inútil.

Mas escrevo este texto feliz. Feliz, porque em 20 anos, vejo um movimento de mudança do que pretendemos para nossos meninos, para os homens que se tornarão. Aqui no consultório, pais e mães – sim, as famílias! – têm me procurado para atender meninos também com seus nove, dez anos, meninos que apresentam dificuldades relacionais e de manejo dos sentimentos, especialmente a raiva. O desejo é que os filhos possam desenvolver um cuidado maior com o que sentem, para que acessem o amor, a tristeza, a alegria, o tédio, as ansiedades, as expectativas — enfim, todo um colorido de emoções. É encantador que meninos estejam vindo desde cedo para a terapia!

Esse público, de pais e mães, em especial, é composto por quem não quer estigmatizar seus filhos como violentos, rebeldes ou sem limites. São pais e mães que desejam que seus filhos se relacionem consigo mesmos e com o mundo de maneira mais doce, mais afetiva, e que a raiva e a explosão não sejam as únicas formas de se expressarem.

Como psicoterapeuta que sente um enorme deleite em estudar a infância e olhar atentamente para as nossas crianças, escrevo este texto para compartilhar meu olhar sobre o acolhimento de meninos, pois acredito que neste processo reside uma oportunidade incrivelmente transformadora para todos nós enquanto sociedade. Me acompanhe!

O campo das emoções e dos sentimento

Para costurar este texto, não poderia deixar de esclarecer que emoções e sentimentos não são a mesma coisa. As emoções são pré-cognitivas, ou seja, passam pelo campo das sensações. Elas não possuem o recurso do pensamento e, por isso, muitas vezes, carecem de linguagem. As emoções vêm, nos invadem, sufocam, animam, libertam — tudo junto e misturado. Já os sentimentos são um nível mais profundo dessas emoções; eles passam pelo pensamento, pela nossa forma de compreender e elaborar o que estamos sentindo.

Perguntar a uma criança, em meio a uma crise emocional, o que ela está sentindo não faz sentido, pois ela não saberá responder. É essencial que ajudemos as crianças a sentir suas emoções, a validá-las, e depois a nomeá-las e compreendê-las. Só então poderemos apoiá-las para que cuidem dessas emoções e desses sentimentos.

O desafio de educar meninos no século XXI

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino

gostava mais do vazio

do que do cheio.

Falava que os vazios são maiores

e até infinitos.

[Manoel de Barros]

Aqui, gostaria de fazer um panorama sobre os desafios de educar meninos e guiar a nossa conversa para um novo horizonte.

O estudo Meninos do Futuro, conduzido pelo Instituto Papo de Homem, nos oferece uma rica tapeçaria de dados sobre as emoções e a masculinidade. Nele, fica claro que os meninos desde cedo são moldados para uma masculinidade que sufoca suas vulnerabilidades. A pesquisa revelou que 85% dos entrevistados acreditam que o choro é um sinal de fraqueza. No entanto, as mesmas crianças manifestam o desejo por relações afetivas mais profundas e autênticas, apontando para a necessidade de espaços onde possam se expressar livremente.

A arte nos apresenta tais desafios com profunda sensibilidade. Recentemente, me deparei com a indicação do filme Close (Close (2022), dirigido por Lukas Dhont. A trama emocional é exibida de maneira brutalmente poética! A amizade entre Léo e Rémi, dois meninos que compartilham uma conexão profunda, é abalada pela expectativa social sobre o que é ser “homem”. O filme expõe, com sutileza, o processo de sufocamento emocional ao qual meninos são submetidos ao longo da vida. O laço de intimidade entre os dois é rasgado não pela vontade deles, mas pelos fios invisíveis da masculinidade tradicional, que ensinam que afeto entre homens é uma fraqueza.

A dor da perda, a impossibilidade de expressar abertamente o amor entre amigos cria um nó que asfixia os protagonistas e nos faz refletir: que masculinidade é essa que não suporta o toque, o cuidado, a vulnerabilidade?

Quando olho para os meninos que atendo, vejo como sofrem por não encontrarem outras formas de expor e explorar suas emoções que não a “explosão” ou “episódios de explosão”, de ruptura, de destruição, de aniquilamento, seguidas por um profundo sentimento de vergonha e medo. Esses sofrimentos tem me chamado atenção para a solidão que eles vivenciam.

Compondo essa trama, ampliando o olhar para as estruturas, meu marido me recomendou o texto “A dominação Masculina”, do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Um texto intrigante e interessante, que analisa como a dominação masculina se perpetua nas sociedades por meio de mecanismos simbólicos e culturais que naturalizam as relações de poder entre os gêneros. 

Ele introduz o conceito de violência simbólica, mostrando como as normas de gênero são internalizadas e reproduzidas através do habitus (conjunto de hábitos e formas de pensar e agir que as pessoas desenvolvem ao longo da vida, com base nas suas experiências sociais e culturais.), moldando tanto homens quanto mulheres a aceitarem essas desigualdades como “naturais”. Bourdieu destaca ainda a importância das estruturas sociais e culturais na manutenção da hierarquia de gênero e propõe que a transformação dessas relações exige a desconstrução dessas mesmas estruturas. 

Desta forma, um tema que precisamos trazer para esse debate e compreensão é a questão de gênero e, para essa prosa, é importante citar Judith Butler, filósofa norte americana especialista em questões de gênero e teoria queer.

A pesquisa Meninos do Futuro e as teorias de Judith Butler sobre gênero podem ser costuradas de forma bem amarrada, especialmente no que diz respeito à desconstrução das normas de gênero e à performatividade das masculinidades, como forma de libertar indivíduos das opressões impostas pelo patriarcado.

 

Butler argumenta que o gênero é uma construção social performativa, ou seja, ele não é algo essencial ou natural, mas sim uma série de atos repetidos que conformam as expectativas sociais sobre como homens e mulheres devem se comportar, enquanto o projeto Meninos do Futuro aponta a educação emocional como uma via para quebrar o ciclo de masculinidade tóxica. 

Novas formas de bordar a masculinidade

“Ser menino não precisa significar ser duro; pode significar ser inteiro, com todos os sentimentos que nos tornam humanos.”

[Projeto Meninos-IPH]

Vimos como os moldes da masculinidade são violentos para homens e mulheres. Assim, é como se estivéssemos bordando com cores erradas, tecendo com fios grossos de raiva, e deixando de lado as sutilezas do carinho, da tristeza e da empatia. A pesquisa que citei também mostrou que, ao serem educados com liberdade emocional, os meninos desenvolvem relações interpessoais mais saudáveis, tanto com si mesmos quanto com os outros. A tecedura de suas vidas se torna mais colorida e leve, sem os nós apertados do machismo.

É preciso desfazer o bordado da masculinidade tóxica, um ponto de cada vez, reeducando os dedos para que aprendam a manejar o fio da ternura. Bordar delicadamente uma trama de emoções, em que cada fio entrelaçado revela novas possibilidades de ser. Não basta seguir o traçado antigo, os pontos aprendidos em gerações passadas, porque esses fios rígidos de agulhas grossas e fortes muitas vezes abafam as cores mais profundas do que é ser humano. Precisamos de novas agulhas, mais finas e sensíveis, para abrir espaço para novos desenhos e tocar o que antes era proibido e silenciado: o choro, o medo, a fragilidade. 

A cada ponto dado, educar meninos para as emoções se torna um ato de reconstrução de identidades e de novas masculinidades, sendo esta uma tarefa coletiva – importante frisar. A cada novo laço, ensinamos que sentir não diminui, mas amplia. A raiva, que tantas vezes foi o único bordado possível, agora se mistura com o azul da calma, o verde da empatia, o dourado da alegria simples. Não se trata de costurar um padrão perfeito, mas de construir um bordado vivo, em que o erro também se torna beleza, em que os nós e os tropeços fazem parte da construção de quem se é.

Para arrematar esse bordado, trago a querida bell hooks, que em The Will to Change: Men, Masculinity, and Love nos aponta um caminho claro: uma masculinidade saudável e plena só pode florescer com a rejeição da violência e da dominação, e a aceitação do amor, da vulnerabilidade e da interdependência. É um convite à cura coletiva, cura em que homens e mulheres caminham juntos para construir uma sociedade mais justa, amorosa e conectada.

Ao longo deste texto, que escrevo com muito carinho e esperança, fica evidente um ponto em comum em toda a literatura e nos estudos abordados: há um chamado urgente à transformação. Seja pela subversão das normas, seja pela reeducação emocional, o objetivo é criar um mundo em que os meninos possam expressar plenamente sua humanidade, livres das amarras da masculinidade patriarcal que sufoca e limita.

Tem sido muito significativo estar com esses meninos, olhando para dentro, para suas relações, e testemunhando seu desabrochar na mais tenra idade. Ajudá-los a conviver com a diversidade de emoções, sensações e sentimentos é fundamental para que possam, sim, manejar suas relações sociais de forma mais segura, não violenta e cheia de afetividade. Como diria a sábia bell hooks:

“Uma visão feminista que […] ama garotos e homens exige, em nome deles, todos os direitos que desejamos para garotas e mulheres.”  

Se você quer conversar mais sobre esse assunto e compartilhar comigo seu desejo de apoiar seu filho em uma vivência mais saudável e significativa com tudo que ele pode ser e sentir, entre em contato. Será um prazer! 

Abraços,

Carol Freire