“Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.”
[Clarice Lispector]
Aqui, no consultório, entre falas, choros, sorrisos, lágrimas e gargalhadas, escuto dia após dia, noite após noite, diversas mulheres buscando uma melhor compreensão de si. Eis que me deparo com Clarice, que nos convida a olhar para as incompreensões. A incompreensão, esse estado assustador em uma sociedade que gosta de resolver, corrigir, encaixar… deixar tudo reto e estrito.
Sentir a incompreensão, recebê-la e tratá-la com um olhar atento é um desafio para todos nós, mas hoje escolhi trazer os dilemas que ouço das mulheres-mães, mulheres que estão navegando pelas complexidades da vida contemporânea e pela rigidez de estruturas concebidas há tempos. Escolho-as, hoje, por oferecer minha escuta atenta e acolhedora para as diversas histórias, os diversos traçados, as diversas meadas que as colocam constantemente na angústia, na culpa e na resignação da “maternidade como único destino”
Sei que já falei dos impactos sociais e econômicos do papel da mulher, do papel da mãe, das diversas tensões no malabarismo da vida, mas hoje trago um pouco de crítica aos discursos psicológicos e terapêuticos que circulam nas redes sociais e impactam, sob o lugar de ciência e conhecimento técnico, o imaginário e o bordar de ser mulher-mãe de tantas queridas que acompanho.
A maternidade contemporânea está situada em um campo de tensões ideológicas, estruturais e emocionais, sendo tanto uma arena de controle quanto de resistência. Ao mesmo tempo em que o capitalismo e o patriarcado se articulam para reforçar papeis tradicionais, movimentos como a psicologia positiva e a parentalidade consciente romantizam o cuidado materno, intensificando a responsabilização das mulheres pelo bem-estar físico e emocional dos filhos.
“Tudo é incerto neste mundo hediondo, mas não o amor de uma mãe.”
[James Joyce]
Estes dois caminhos atribuem às mães um papel central e insubstituível no cuidado e no suporte emocional dos filhos. Embora promovam objetivos nobres, como o fortalecimento de vínculos familiares e o bem-estar das crianças, também podem reforçar expectativas sociais que confinam as mulheres ao ambiente doméstico e à função de cuidadoras primárias.
O movimento de parentalidade consciente, derivado da psicologia positiva, por exemplo, se baseia em práticas que promovem o mindfulness e a regulação emocional como ferramentas para fortalecer os vínculos familiares. Ainda que tenha aspectos positivos, como o estímulo à empatia e à comunicação e desenvolvimento de vínculo, essas abordagens tendem a concentrar nas mães a responsabilidade pelo equilíbrio emocional dos filhos, retratando-o como uma consequência direta da capacidade materna de autocontrole e presença constante. Ao cabo, essa narrativa perpetua o romantismo do sacrifício materno, invisibilizando outras formas de organização familiar e ignorando os desafios estruturais que limitam a autonomia das mulheres. Assim, questões como a sobrecarga emocional, as expectativas sociais e a responsabilização exclusiva das mães precisam ser criticamente analisadas.
Estudos recentes, como o relatório da UNICEF (2022) e a pesquisa da Universidade de Lisboa (2019), mostram que essas práticas podem ampliar a pressão sobre as mães, ao exigir uma dedicação emocional praticamente ilimitada e um constante estado de prontidão emocional. Assim, o ideal romantizado do papel materno se cristaliza, enquanto outras figuras parentais e redes de apoio são marginalizadas nesse processo.
Imaginem, nessa imensidão que é a internet e as redes sociais, onde todos falam como figuras de autoridade e donos da verdade, milhares de pessoas recebem essa informação, bordada com nuances de psicologia e ciência, e se sentem cada vez mais incapazes, mais angustiadas, mais emaranhadas nessa busca por uma maternidade que não cause sofrimento em seus filhos. O resultado é bem ruim… Muitas abandonam a carreira, se desconectam no casamento, se afastam da vida com amigos, para exercer – sozinhas – esse ofício desafiador, que é educar uma criança.
“Imagine se as mulheres entram em greve e não produzem filhos, o capitalismo pára. Se não há controle sobre o corpo da mulher, não há controle da força de trabalho.”
[Silvia Federici]
Ao pesquisar sobre maternidade na contemporaneidade, me deparo com os estudos de Silvia Federici, Valeska Zanello, Vera Iaconelli, Elisabeth Badinter e de tantas outras intelectuais das diversas fases do feminismo e suas intersecções, e observo que precisamos parar de homogeneizar aquilo que não é homogêneo, afinal, o viver e as experiências são singulares, intimamente tramados, bordados nas meadas possíveis da vida cotidiana, com as linhas econômicas, de raça, gênero, escolaridade e demais condições. Compartilho alguns dos principais pensamentos dessas mulheres para a gente ver como essa malha se forma e se conecta. Vem comigo.
Valeska Zanello, quem tenho lido com imensa admiração, destaca como a romantização da maternidade, muitas vezes, esconde o adoecimento psíquico das mulheres, que são levadas a acreditar que devem encontrar na maternidade sua realização máxima. Esse ideal sufoca as possibilidades de subjetivação feminina fora do papel materno, aprisionando as mulheres em um modelo que perpetua desigualdades.
Outra autora que comentei é a psicanalista Vera Iaconelli, que traz em seu livro “Manifesto Antimaternalista” o questionamento da naturalização da maternidade como destino feminino e convida o resgate da ideia de que mulher-mãe pode viver a ambiguidade, propondo um rompimento com a visão idealizada da maternidade, cada vez mais reforçada pela lógica medicalizante da vida. Para ela, a experiência materna deve ser desromantizada, e o reconhecimento da ambivalência – o fato de que amar um filho não exclui o cansaço, a frustração ou o desejo de estar em outro lugar – é fundamental para a emancipação das mulheres.
É importante notar que a concepção de mulher-mãe-dona-de-casa é fundamental para o modo de produção capitalista, pois se ela está cuidando da prole (perceba a relação das palavras prole e proletariado). Esse trabalho de cuidado não é remunerado, assim, o Estado, a sociedade e as políticas públicas não precisam se envolver. É a lógica neoliberal do “cada um por si”.
Sobre isso, vamos a Silvia Federici. A pensadora argumenta que o trabalho reprodutivo não remunerado das mulheres é um pilar central do capitalismo. A maternidade, nesse cenário, é idealizada como um espaço de amor e sacrifício, mascarando a sua função de sustentar a força de trabalho de forma invisível. Essa dinâmica é ampliada por políticas neoliberais que precarizam o trabalho formal e desinvestem em políticas públicas, como creches e licenças parentais, empurrando as mulheres de volta ao lar. E com a internet, isso tudo recebe uma pitada de glamourização, como forma de amor e cuidado, ou ainda, psicologizando as coisas, tratando-as como “a importância deste investimento afetivo essencialmente materno”.
Posso seguir aqui fazendo o recorte de que essa glamourização é algo que precisa ser visto com muito cuidado, pois reforça a meritocracia e ignora as diversas interseccionalidades que se emaranham e tecem o tema. Mas vou seguir trazendo argumentos para pensar o todo, sem aprofundar em cada figura. De qualquer forma, deixo aqui o convite para refletirmos sobre isso 😉
Elisabeth Badinter, filósofa francesa, complementa essa análise ao abordar o papel do mercado na construção da maternidade moderna. Em um capitalismo tardio, a indústria da maternidade vende não apenas produtos, mas também ideais inatingíveis de perfeição. O consumo, em vez de libertar as mulheres, reforça as normas de gênero, tornando-as reféns de tecnologias, serviços e discursos que prometem soluções enquanto intensificam as pressões sobre o cuidado infantil. Também alerta para o retrocesso que ocorre quando o discurso da maternidade como vocação natural é revigorado, deslocando o debate da emancipação para a reafirmação de papeis tradicionais. Para ela, o desafio está em recusar a imposição de papeis de gênero como destino e promover uma maternidade que seja compatível com a autonomia feminina. É por acreditar que esse caminho é possível, que estou aqui compartilhando tudo isso com vocês e cuidando de muitas mulheres-mães para que elas se fortaleçam neste sentido.
Fazendo uma costura dessas leituras com seu impacto na saúde mental, retomo Valeska Zanello, que aponta que as mães são frequentemente colocadas em um lugar de responsabilização total pela saúde emocional dos filhos, especialmente em discursos de parentalidade positiva. Em sociedades que exaltam a mãe como figura de sacrifício, qualquer falha ou dificuldade é vista como uma insuficiência individual, ignorando o impacto das condições materiais e das relações sociais. A culpabilização materna funciona como um mecanismo de controle que imobiliza as mulheres, isolando-as e impedindo-as de questionar as estruturas que as oprimem. “Nasce uma mãe, nasce uma culpa”, dizem.
“O ideal do amor e da verdadeira generosidade é dar tudo de si, mas sempre sentir como se isso não houvesse lhe custado nada.”
[Simone de Beauvoir]
Essas palavras de Simone me soam ardidas, mas é isso que, muitas vezes, uma escuta atenta e acolhedora no consultório capta ao fundo durante um desabafo feminino. É isso que dói. Não é o cuidar, não é o fazer; é sentir como se não fosse nada, como se fosse simples, leve, até mesmo divino. E a realidade, sabemos, é bem diferente disto.
A análise da vida contemporânea à luz das reflexões propostas por essas autoras revela um quadro de tensões e desafios. Sob o capitalismo, a maternidade é utilizada como ferramenta de exploração e controle, sustentada por ideais que sobrecarregam emocional e materialmente as mulheres.
A crítica antimaternalista e feminista, no entanto, propõe uma reimaginação da maternidade como um projeto coletivo e político, não singular e consumista, no qual a mulher possa exercer sua autonomia sem ser aprisionada por ideais inatingíveis ou exigências estruturais. Isso exige o reconhecimento do trabalho reprodutivo, o fortalecimento de políticas públicas e a desmistificação do instinto materno, abrindo caminho para uma maternidade verdadeiramente emancipadora e integrada às lutas pela igualdade de gênero.
Neste texto, trouxe mais questionamentos do que respostas, mais dúvidas do que prescrições. A partir das escutas e estudos, tudo aqui pulsa para questionar e dividir as exclamações que surgem durante essa jornada, torcendo genuinamente para que as palavras toquem e mobilizem mais mulheres a não temerem incompreensão, vendo nisso um potencial incrível para mudar a rota. Por isso, encerro com os versos da diva Rita Lee: “Um belo dia resolvi mudar e fazer tudo o que eu queria fazer.” Nunca é tarde!
Se você foi tocada por este artigo, será um prazer continuar a conversa e acolher as suas vivências e a paleta de cores da sua maternidade. Mande uma mensagem e agendamos um horário.
Abraços,
Carol Freire
REFERÊNCIAS:
Federici, S. (2004). Calibã e a bruxa.
Iaconelli, V. (2021). Manifesto Antimaternalista.
Badinter, E. (2010). O Conflito: A Mulher e a Mãe.
Relatório UNICEF (2022) sobre parentalidade positiva.
Universidade de Lisboa (2019). Parentalidade Consciente e Ajustamento Psicológico.
Zanello, V.(2018) Saúde Mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação.