Empoderamento feminino: por que esse conceito não é o bastante?

Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.

Meia palavra mordida
me foge da boca.

Vagos desejos insinuam esperanças.

Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.

Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.

Antevejo.

Antecipo.

Antes-vivo

Antes – agora – o que há de vir.

Eu fêmea-matriz.

Eu força-motriz.

Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.

Conceição Evaristo – Eu Mulher

Começo esta reflexão com os versos que tocam a mim e às mulheres com as quais compartilho, sejam amigas, sejam clientes. As palavras de Conceição Evaristo ecoam a potência feminina, diante de um mundo que nos violenta de tantas formas. Por tantas veias e vias. Até nos modos sutis, como discursos esvaziados de um sentido mais profundo. 

É neste lugar que reside o conceito de empoderamento feminino, já cooptado pelo mercado para ser vendido enlatado como solução neutralizante das demais violências sofridas pelas mulheres. Mas basta mesmo a mulher se sentir empoderada para não ser assediada, subjugada, discriminada? É, as coisas não são tão simples assim. Para esmiuçar as linhas dessa trama, te convido a vir comigo!

Mulheres, no plural

Mais do que nunca, estamos tendo a oportunidade de falar de empoderamento. Hashtags como #GirlPower, campanhas publicitárias que destacam a força da mulher, debates sobre o tema nas redes sociais ganharam espaço nos últimos anos. Mas quando o assunto é colocar em prática esse empoderamento ainda esbarramos em uma série de lacunas e variáveis que impossibilitam a vivência plena desse encontro com o poder de si mesma.

Exemplo dessa trama é quando uma mulher experiencia um casamento abusivo e tóxico, que a inibe de viver todas as suas potências femininas de criação e revolução. Nesses casos, podem chover palavras de acolhimento e de impulso para ela peça o divórcio e volte a se encontrar consigo mesma. “Você não depende dele”. Porém, quando ela, de fato, se separa não encontra esse mesmo acolhimento para sua nova escolha, seja na autonomia financeira, no (re)ingresso no mercado de trabalho, em novas relações, na rede de apoio com as crianças – quando se tem filhos.

“Suas asas são cortadas, mas ainda assim ela é culpada por não saber como voar.”
Simone de Beauvoir

Precisamos resgatar o fato de que somos seres sociais, e fenômenos estruturais, como a desigualdade de gênero, não deveriam ser analisados de forma estreita; requerem um olhar caleidoscópico, no qual diversos fragmentos assumem formas a partir do movimento de quem vê e do que é visto. Na experiência enquanto mulheres circunscritas em uma sociedade patriarcal, colonialista e racista, essa abordagem, então, abarca condicionantes sociais, econômicas e políticas para compreender as diferentes camadas do ser mulher.

Foi nos anos 80 que Williams Crenshaw, defensora dos direitos humanos e nome fundamental na crítica racial, cunhou a teoria da interseccionalidade:  “uma política de atravessamentos das opressões de gênero, raça, classe e outros eixos formadores da identidade¹”. Antes disso, bell hooks pavimentou o caminho para essa discussão em suas ideias feministas e antirrascistas.

Quando adicionamos o fator da interseccionalidade, a questão do empoderamento feminino fica ainda mais complexa e delicada, porque apesar de sermos todas mulheres, não somos todas mulheres iguais. Existem dimensões do que nos é permitido, de acordo com nossa raça, etnia, condição econômica e social e orientação sexual. Compreendê-las é exercício fundamental para que não caiamos em um universo vago de relativismos e meritocracias.

Das fibras desordenadas, passando pelo fiar e possibilitando o tecer

 “Construir uma comunidade requer uma consciência vigilante do trabalho que devemos fazer continuamente para minar toda a socialização que nos leva a nos comportar de maneira a perpetuar a dominação.” 

bell hooks*

Partindo do princípio de que não podemos falar de empoderamento feminino se não discutirmos sororidade, questões de gênero, raça e valores, compartilho com você alguns conceitos que fazem parte do meu tecer enquanto mulher, enquanto psicoterapeuta. 

Entendo que o empoderamento é um conceito que deve ser visto com muita cautela, porque ao mesmo tempo que indica se apropriar do poder pessoal, traz embutida uma responsabilidade, quase que exclusiva, de que só depende a mulher fazer e acontecer, assumindo a lógica neoliberal do indivíduo por si e só. Mas, entre se perceber com poder e exercer o poder, há um grande hiato. Mulheres negras, periféricas, mães enfrentam desafios específicos e mais complexos do que mulheres brancas, de classe média alta, por exemplo. A conjuntura facilita ou não o estar no mundo.

No Brasil de hoje, podemos ver claramente o efeito das camadas econômicas, sociais e raciais, que fazem com que a mulher negra tenha o maior índice de pobreza, o que, certamente, impacta em sua possibilidade de autonomia  e de libertação.

Fonte: Nexo Jornal

Para complementar essa interpretação, trago a crítica proposta pela Andrea Cornwall, apresentado o empoderamento light como esse viés que “destitui qualquer confrontação com as relações sociais e de poder subjacentes que produzem iniquidades sociais e materiais.” Em seu artigo, ela traz a narrativa recorrente de instituições e organizações, que se aproveitam do discurso do empoderamento para ‘capacitar mulheres e liberar o seu potencial’, apontando isso como importante motor para o crescimento econômico – “as mulheres tornam-se um meio de assegurar esses resultados, instrumentalizados para “suprir” o desenvolvimento.” O empoderamento opera, então, em função do sistema.

 “Ser feminista te faz mais consciente dessas pequenas coisas, de que há pessoas às quais não ocorre que as mulheres também somos seres humanos.”

Chimamanda Ngozi Adichie

Nesse mundo do trabalho, o discurso de empoderamento feminino pode ser ainda mais desviado do propósito mais importante: a realização das mulheres enquanto seres capazes e com direito de se existir livremente. Por isso, a ONU criou um documento com os Princípios de Empoderamento das Mulheres, com foco no universo empresarial e corporativo, que contribui para deslocar toda a responsabilidade da mudança na mulher, a partir da formação de um contexto favorável e receptivo à expressão, presença e participação femininas.

Fonte: www.onumulheres.org.br 

Desse modo, acredito que precisamos preencher o empoderamento com substância. Com nossa substância crítica e coletiva. Por isso, falo do conceito de fortalecimento atrelado ao primeiro, sublinhando a importância de construir não só uma rede própria de autocuidado, gestão, suporte, mas também de uma mudança de mentalidade e de ações das diversas esferas sociais para que possamos, de fato, acolher e viver essas pluralidades femininas de uma maneira mais autêntica e mais emancipatória.

Fortalecimento é o processo mediante o qual os membros de uma comunidade desenvolvem, conjuntamente, capacidades e recursos para controlar sua situação de vida, atuando de maneira comprometida, consciente e crítica para alcançar a transformação de seu entorno segundo suas necessidades e aspirações, transformando, ao mesmo tempo, a si mesmos.” 
Montero, 2003 p. 65

Encontrar e se apropriar do poder pessoal é, sim, importante e transformador para as mulheres, porém não é a varinha mágica que resolve todos os problemas estruturantes da nossa sociedade. Daí a preferência pela ideia de emancipação do que empoderamento, pois a emancipação abraça uma visão plural e diversa de libertação. Afinal, quando ignoramos o entorno e as condições impostas do que a mulher é ou não é autorizada a fazer, nos fragilizamos ainda mais, carregando atributos como heroína e guerreira, que nos sobrecarregam e nos impedem de viver plenamente, de novo e de novo.

Meu lugar de fala aqui é enquanto psicóloga, uma psicóloga que tem por princípio uma Psicologia que busca promover a libertação. Por isso, encerro o artigo, deixando você com esse pensamento de Martín Baró, uma das grandes referências para o meu existir pessoal e profissional:

“A libertação é vista como constituinte de um processo histórico e coletivo necessário, que nasce da autonomização dos sujeitos, do resgate  e potencialização das virtudes populares, bem como do processo de facilitação da conscientização individual e grupal advindo da organização e fortalecimento dos grupos” 

Martín-Baró

Você, como mulher, acredita que outros caminhos são necessários para uma genuína transformação e libertação acontecer para todas nós? Estou aqui para falarmos mais sobre isso e te apoiar na jornada da experiência feminina. Conte comigo!

 

*bell hooks em letras minúsculas mesmo, como prefere ela própria.
Fontes:
¹Viver nas fronteiras: feminismo interseccional e outros espaços de educação
Nexo Jornal
ONU Mulheres
Além do “Empoderamento Light”: empoderamento feminino, desenvolvimento neoliberal e justiça global
Martín-Baró “O papel do Psicólogo”
Maritza Monteiro, “Tensão entre o fortalecimento e as influências alienadoras no trabalho psicossocial comunitário e político.”