Desenvolvimento infantil na contemporaneidade: cuidado, acolhida e participação

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia
Eu sozinho, menino entre mangueiras
lia história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.

café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu… não corde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito
E dava um suspiro… que fundo !
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

(Carlos Drummond de Andrade)

O início da vida, o corpo – antes dentro de outro – agora em contato com o ar, com o sol, a terra. A estreia da vida do lado de fora da mãe, os primeiros movimentos, toques, olhares e sons. Quando uma criança nasce, qual mundo ela encontra? O poema “Infância”, que escolhi para abrir este artigo sobre desenvolvimento infantil, é costurado pelas memórias, imagens, pessoas e sabores do mundo que cercava o menino quando criança. Quem me acompanha por aqui sabe o quanto do desabrochar de uma vida me fascina, me interessa e o quanto me debruço sobre o tema em meus estudos e práticas. 

Por isso, convido vocês hoje para leitura deste texto, no qual busco compartilhar os aspectos que envolvem um novo paradigma relacionado aos cuidados com a primeira infância. Um cuidado amoroso, um ambiente de confiança, uma comunicação afetuosa e honesta, a possibilidade de autonomia e uma interação que considera bebês e crianças estão entre as questões que atravessam o desenvolvimento infantil na contemporaneidade e que levam a uma compreensão mais integral dos pequenos em crescimento físico, mental e emocional. Vamos lá?

O que é desenvolvimento infantil e primeira infância? 

Para começar nossa conversa, vamos olhar para o que pode ser considerado o desenvolvimento infantil e a primeira infância. Segundo a Unicef, “a primeira infância, período que vai da concepção até os 6 anos de idade, é considerada uma janela de oportunidades crucial para a saúde, o aprendizado, o desenvolvimento e o bem-estar social e emocional das crianças.”

Ainda de acordo com a instituição, existem estudos científicos capazes de demonstrar que as primeiras experiências vividas na infância, bem como intervenções e serviços de qualidade ofertados nesse período, são cruciais para se estabelecer uma base para o desenvolvimento dos pequenos.

Desse modo, o que se passa no início da vida é ponte, trampolim, para o desenvolvimento integral de meninas e meninos. Mas, para isso, sabemos que é fundamental que haja envolvimento e investimento de diversos setores da sociedade nessa fase da vida para que essas passagens, travessias e acontecimentos sejam, de fato, positivas para as crianças. 

A neurociência nos mostra que o cérebro da criança pequena possui uma significativa plasticidade, ou seja, ele está sempre adquirindo novos aprendizados e é sensível às modificações, em especial, nos primeiros 1.000 dias de vida, que são contados a partir do primeiro dia da gestação até os 2 anos de idade. 

Assim, é durante esse período que o desenvolvimento cerebral se dá em uma velocidade única na vida. As células cerebrais podem fazer até 1.000.000 de novas conexões neuronais a cada segundo. Por meio dessas conexões, é formada a base das estruturas responsáveis por oferecer sustentação à aprendizagem ao longo da vida. 

Então, podemos compreender essa fase do desenvolvimento infantil como aquela na qual são aprendidas as habilidades emocionais, cognitivas e sociais, e durante a qual são desenvolvidas a capacidade intelectual e as competências com maior facilidade. 

A criança chega ao mundo e leva o mundo consigo

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

(Cecília Meireles)

Diante do que foi exposto, podemos ver a potência do início da vida. Mas e quando o mundo que a recebe não é capaz de oferecer as condições básicas e mínimas para seu desenvolvimento enquanto ser humano com direitos? E quando há ausências, no plural, de afeto, segurança, educação, cuidado e respeito? 

Para partir para nosso próximo tópico, gostaria de destacar que a gestação, o nascimento e o crescimento de uma pessoa não estão limitados às questões do corpo, de ganhar peso e altura. Eles extrapolam os limites do físico e alcançam camadas mais sutis, porém fundamentais, como aspectos psíquicos e emocionais. Os atravessamentos da infância vão compor a história e a formação de uma pessoa. Quando adulta, como essa criança vai atuar no mundo? Muito provavelmente com base no que ela experimentou no começo de tudo. 

Por isso, convido e trago neste artigo uma nova perspectiva em relação ao desenvolvimento infantil, na contemporaneidade, que olha e considera o bebê, que defende um cuidado amoroso, respeitoso e acolhedor e que integra a criança e não a segrega como um ser menor. Vem comigo!

O desenvolvimento infantil e a abordagem Pikler

Entre tantas possibilidades de compreensão do desenvolvimento infantil e as complexidades que permeiam a jornada, me debruço sobre a abordagem Pikler para tratar do tema, pois é uma das que mais me toca, que se aproxima do que acredito e que estudo no limite. 

Dessa forma, aproveito aqui para fazer um breve resgate da abordagem Pikler, que foi pensada e fundada pela pediatra Emmi Pikler, após a Segunda Guerra Mundial, para acolher bebês e crianças pequenas, em Budapeste. 

O Instituto Pikler surgiu com o objetivo de receber, de forma cuidadosa, esses bebês de zero a três anos, vítimas do conflito, em um ambiente coletivo. Para isso, foi implementado um sistema que promovia um novo paradigma em relação ao olhar para a primeira infância.

O foco, na abordagem Pikler, está no desenvolvimento neuropsicomotor da criança a partir do movimento livre, no respeito pela individualidade, pelo tempo e ritmo de cada uma, na comunicação que considera, escuta e integra a criança, e no estabelecimento de um vínculo com ela.

É sob esse aspecto revolucionário que compartilho com vocês e destaco alguns dos princípios que costuram e guiam essa abordagem que transborda em respeito, tato, sensibilidade e gentileza que, ao meu ver, são elementos de uma ética por vezes ausente, infelizmente. 

Na abordagem Pikler:

  • bebês e crianças são vistos como sujeitos competentes e que necessitam vivenciar a liberdade de movimentos. Desse modo, as conquistas motoras se dão de “dentro para fora”. Há respeito pelo tempo e ritmo de cada um, sem generalizações e comparações. Não há antecipação de etapas. 

 

  • os momentos de cuidados corporais, como troca de fralda, banho e alimentação, são de suma importância. O contato visual, o gesto gentil, a voz da pessoa adulta que é referência na situação oferecem um suporte e convidam o bebê a entrar gradativamente em contato com o adulto. É preciso estabilidade e continuidade para que, aos poucos, o bebê possa nascer psiquicamente. Por isso, esses momentos de cuidados e de encontro são como o regar de uma planta, que vai ganhando força. A presença afetuosa gera sentimentos de confiança e segurança que vão se enraizando e permitindo que o bebê siga adiante nos momentos em que ficará sem a pessoa adulta por perto. 

 

  • é dada uma ênfase ao trabalho de observação do bebê. Quando falamos de profissionais que atuam com crianças tão pequenas, é fundamental que eles saibam observá-las de forma atenta, presente e sensível para, assim, saber o que esperar e como conduzir o cuidado. 

 

  • a forma como os adultos falam e se comunicam com os bebês e as crianças também é questionada – e transformada – pela abordagem Pikler. Por que falamos diferentes com os pequenos? Por que fazemos gestos que não fazemos em uma conversa entre pessoas adultas? Considerar o modo de falar com os pequenos e o modo de ouvi-los é um aspecto importante no desenvolvimento infantil. Isso porque, como citado anteriormente, nos três primeiros anos de vida é quando a criança descobre o mundo, se reconhece enquanto indivíduo próprio e começa a construir sua base cultural, de linguagem e comunicação.  

 

  • a autonomia dos bebês e das crianças é estimulada tanto por meio da linguagem como pelo olhar, pelo gesto e pelas condições de ambiente, espaço e acesso para que as descobertas das capacidades e habilidades aconteçam com confiança e em segurança. Calçar os sapatos, organizar os brinquedos, colaborar com as tarefas de casa, conversar sobre conflitos e acolher as frustrações. Estas podem ser algumas formas de colaborar para a formação de uma pessoa com autonomia e consciência de sua presença no mundo. 

Para uma infância mais participativa e mais acolhida 

Bem, para finalizar este artigo, gostaria de compartilhar outras práticas possíveis que vão ao encontro de um desenvolvimento infantil sustentado e orientado por um cuidado mais amoroso, ético e sensível. 

Assim, para que a infância possa ser esse valioso espaço-tempo, feito de acolhimento e de participação ativa dos pequenos, considero importante a discussão permanente – tanto entre as pessoas adultas como com as próprias crianças – de temas que fazem parte do mundo contemporâneo e que atravessam as infâncias em diferentes camadas. 

Destaco, entre eles, as questões voltadas aos meio ambiente, à natureza e ao clima; questões de gênero e raciais, como machismo e racismo; e questões que dizem respeito aos direitos e às políticas públicas relacionadas à infâncias. 

As conversas podem ser balizadas por livros sobre os assuntos, por encontros com profissionais das áreas, com vivências e através das próprias brincadeiras propostas. Trazendo para o debate, para o centro e para as infâncias do agora que podemos pensar em mudanças estruturais e em futuros melhores. 

Por fim, voltamos ao Drummond e às lembranças da infância. Quais versos nossos pequenos vão escrever sobre o tempo em que eram crianças? Fica meu convite para que pensemos juntas e juntos novos presentes. 

Até o próximo encontro por aqui!

 

Fontes:

Unicef
Lunetas
Lunetas
Universidade de Santiago de Compostela