Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive
de Ricardo Reis (Fernando Pessoa)
O que é ser grande? Quando se é pequeno, se é menor? Começo este artigo sobre crianças, adolescentes, cidadania e pertencimento com essas duas provocações. Enquanto seres de desenvolvimento, os pequenos e os jovens são movimento, são o caminhar da vida em sua jornada que começa fresca e vai amadurecendo. Mas crianças e adolescentes são pessoas e já são sujeitos, já são alguém. Não vão virar gente, como muito se ouve por aí. E, por meio do desenvolvimento físico, mental, psíquico e emocional vão ganhando vivências, contornos e vão se apropriando de si, do mundo e dos outros.
Desse modo, é desta perspectiva, de que crianças e adolescentes são pessoas que atuam, que afetam e são afetadas pelo mundo, gerando e absorvendo os efeitos das relações e do meio em que vivem, que proponho tecer algumas ideias e reflexões. Te convido para seguir com a leitura deste artigo para que possamos pensar juntas e juntos em como a educação, a família e a sociedade podem colaborar, em consonância, com a promoção da cidadania e do pertencimento quando tratamos de crianças e adolescentes. Vamos nessa?
O que é ser criança e adolescente?
“A criança é feita de cem.
A criança tem cem mãos cem pensamentos
cem modos de pensar de jogar e de falar.
Cem sempre cem modos de escutar as maravilhas de amar.
Cem alegrias para cantar e compreender.
Cem mundos para descobrir.
Cem mundos para inventar.
Cem mundos para sonhar.”
Loris Malaguzzi
Para começar nosso bate-papo, proponho pensarmos em como entendemos o que é ser criança e o que é ser adolescente nos dias de hoje. Um primeiro aspecto que podemos olhar é sob o ponto da faixa etária.
Quando falamos de maneira internacional, por meio da Convenção sobre os Direitos da Criança (1990), adotada pela Organização das Nações Unidas, ser criança é ter menos de 18 anos de idade, exceto quando a maioridade é alcançada antes disso.
No Brasil, a legislação nacional considera como criança a pessoa que tem até 12 anos incompletos, sendo o adolescente aquele que tem entre 12 e 18 anos de idade, conforme o artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
No entanto, como falamos na introdução deste texto, crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento e as características que marcam esses períodos se dão por sentidos muito mais amplos do que a idade.
Dessa maneira, temos o contexto social e psicológico, dentro do qual a criança e o adolescente são compreendidos a partir dos seus modos de se comportar, sentir e agir, com base na relação que possuem com o mundo a sua volta e com as relações que estabelecem com os adultos de convívio.
Por isso, definir o que é uma criança ou um adolescente passa por lugares que vão muito além da faixa etária e nos convidam a um mergulho na subjetividade de cada sujeito, na visão global do universo no qual está inserido e distante da tão falaciosa ideia de modelo universal.
Assim, ressaltam os sociólogos Allison James e Alan Prout, ‘o período da infância não é um fenômeno singular e universal, pois o ser criança não pode ser completamente separado de variáveis sociais e culturais como classe, gênero e etnia.’
Então, ao meu ver, compreender que existem especificidades e que crianças e adolescentes são seres complexos em suas experiências, é fundamental para um caminho no qual haja garantias de cidadania e de pertencimento em suas jornadas.
O desenvolvimento humano em sua totalidade
“Quando uma criança atua por iniciativa e interesse próprio, adquire capacidades e conhecimentos muito mais sólidos do que se tratamos de lhe ensinar.”
Emmi Pikler
É sobre essa visão do desenvolvimento humano global que compartilho com vocês a teoria de Henri Wallon, filósofo, médico, psicólogo e político francês, que traz contribuições significativas sobre o entendimento da criança, considerando quatro campos funcionais: movimento (ato motor ou motricidade); afetividade; inteligência e pessoa (formação do eu).
Vale destacar aqui que, apesar de distinguir quatro campos funcionais, Wallon defende a ideia de integração desses campos, dizendo que esses são complementares e atuam de forma totalizante. Sob esse aspecto, o autor é um dos poucos teóricos do século XX, que olha para a criança em sua totalidade, compreendendo-a de forma holística.
Mas, Carol, o que significam os quatro campos funcionais propostos por Wallon no desenvolvimento humano? Bem, vamos falar um pouco sobre cada um deles:
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Movimento
No início, tudo é movimento. Sendo o primeiro a se desenvolver, é o movimento que dá apoio à evolução dos outros campos funcionais. Ele está intimamente ligado às emoções, pois são elas que mobilizam a afetividade das mais variadas formas.
Desse modo, para Wallon, o movimento é a tradução da vida psíquica, antes do surgimento da palavra. Este movimento no início da vida permite que a criança vivencia situações de aprendizado.
Wallon entende que é isso que fará a individualização entre a criança e o meio, ou seja, o movimento e as emoções vão, de forma complementar, ajudar no processo de formação do eu, criando na criança uma noção de singularidade, de diferenciação, entre ela e o ambiente que a cerca.
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Afetividade
A afetividade vem antes da cognitividade e, de acordo com Wallon, a afetividade está ligada às manifestações de dimensões tanto psicológicas como biológicas. As manifestações psicológicas são representadas pelos sentimentos e desejos, e as manifestações biológicas são representadas pelas emoções.
É considerada uma manifestação afetiva de ordem biológica aquela que afeta diretamente os batimentos cardíacos, a respiração e o tônus muscular. Ou seja, a emoção deixa sua marca na musculatura. Desse ponto, então, parte a relação de mutualidade e complementaridade, defendida por Wallon, entre a emoção e o movimento.
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Inteligência
Segundo a teoria de Wallon, o surgimento da inteligência está vinculado tanto a fatores biológicos como sociais. Podemos entender os fatores biológicos ligados às emoções que têm o papel de estabelecer “uma relação imediata dos indivíduos entre si”, como diz Wallon. Já os fatores sociais estão conectados ao meio social que contribui, de forma significativa, com dois aspectos: o sistema de símbolos e a linguagem.
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Pessoa (formação do eu)
O quarto campo diz respeito à pessoa que, na concepção walloniana, é tanto um campo funcional como parte dos outros campos como afetividade, movimento e inteligência. Neste sentido, no início da vida, um bebê não se vê como um indivíduo singular, diferenciado do outro e do ambiente.
No entanto, o bebê não deixa de existir como ser social, pois ele sabe se comunicar desde o seu nascimento, por meio do choro, como forma de sobrevivência. Mas o elaborar de uma personalidade, de fato, que começa a romper com essa indiferenciação se dá por volta do primeiro da criança e acontece por intermédio das pessoas com as quais convive.
Sendo assim, diante desses quatro campos funcionais, o desenvolvimento é compreendido por mim – e por diversos outros autores que estudo (Pikler, Vigotski, Bronfenbrenner, Piaget) -, como um processo contínuo, sempre em movimento, incluindo tanto movimentos de crescimento e abertura, como movimentos de conflitos, descompassos e crises. Pois a existência social e a existência individual estão em um constante vir-a-ser, em uma dança feita de encontros entre as esferas internas e externas. Como exemplo de meio externo, temos a educação e seu papel no desenvolvimento humano e na promoção da cidadania. Acompanhe a seguir.
O papel da educação no desenvolvimento humano: cidadania e pertencimento de crianças e adolescentes
“Toda criança do mundo deve ser bem protegida
Contra os rigores do tempo
Contra os rigores da vida.
Criança tem que ter nome
Criança tem que ter lar
Ter saúde e não ter fome
Ter segurança e estudar.
Não é questão de querer nem questão de concordar
Os direitos das crianças todos tem de respeitar.”
Ruth Rocha
Bem, depois dessa breve explicação sobre os campos funcionais de Wallon que integram o desenvolvimento humano, vamos trazer para o debate o papel da educação nessa construção da personalidade, desse “eu”, na infância e na adolescência.
Para isso, trago agora uma situação social e histórica recém experimentada pelas crianças e jovens: as eleições de 2022. Gostaria de saber como foi essa experiência por aí. Quais discussões foram suscitadas? Quais conversas brotaram? Como os debates, as discussões e a polaridade política atravessaram as dimensões da vida – na escola, em casa, com a família, etc? Compartilhar é uma forma de pensar juntos e construir novas ideias.
No recorte que proponho aqui, sobre educação, olho para a para as da sala de aula. O exercício do voto é uma prática de cidadania, que, este ano, no entanto, despertou comportamentos e reações que afetaram as relações no âmbito escolar. Infelizmente, tivemos noticiados em jornais casos de aumento de violência, perseguição, racismo e apologia ao uso de armas em escolas de diferentes regiões do País. Um paradoxo entre cidadania e ausência de consciência, de responsabilidade com o mundo e com o outro.
Escolho o exemplo das eleições e dos seus desdobramentos para pontuar a questão da formação da personalidade e da formação de sujeitos atuantes no mundo, com direitos e deveres, por se tratar de uma fato contemporâneo, vivo e vivido de forma intensa pela maior parte da população brasileira. Escolho as eleições, então, para ilustrar, no tempo do agora, o olhar global que considera o atravessamento do meio, do contexto e das relações no pensar e no agir das crianças e adolescentes e também para alertar sobre como estamos educando e ensinando sobre diferenças, tolerância e frustração.
Aqui, acredito que seja importante falarmos sobre o sentimento de pertença. Pertencer é uma necessidade que anda com a gente pela vida toda e trata-se de algo intrínseco ao ser humano. Fazer parte de um grupo, ter senso de comunidade, de encontrarmos pares, de sentir a conexão com o outro e com o mundo ao qual pertencemos, como diz Maslow, é fundamental, na esfera psíquica para vivermos, assim como o ar para o corpo físico.
Outro conceito que entendo importante pontuarmos neste artigo para melhor compreensão de como tudo está interligado é o próprio conceito de cidadania. Para Paulo Freire, “a cidadania se cria com uma presença ativa, crítica decidida, de todos nós com relação à coisa pública”.
“A educação para a cidadania visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autônomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo. ” (MEC, 2012).
Desse modo, volto a Wallon e à sua teoria global sobre desenvolvimento humano e à sua fala que destaca o papel da educação na valorização da emoção no processo ensino-aprendizagem, a função da escola no desenvolvimento infanto-juvenil, enquanto meio social, e a visão política da educação que convida para uma postura humanista.
Escola, família e sociedade na formação do ser
Cada um lê com os olhos que tem.
E interpreta a partir de onde os pés pisam.
Leonardo Boff
Para finalizar esse artigo sobre crianças, adolescentes, cidadania e pertencimento, incluo a família e a sociedade – junto com a escola – no tripé que forma a jornada ao longo do desenvolvimento humano.
Ao meu ver, é preciso que haja uma harmonia entre valores e virtudes compartilhados pelas famílias e pelas instituições de ensino para que, de fato, tenhamos a formação de pessoas em sintonia com um mundo mais democrático e inclusivo.
Assim, para embasar meu pensamento sobre essas três forças atuantes na formação dos sujeitos, compartilho o pensamento da psicóloga, consultora educacional e autora do livro “Educação sem Blá-blá-blá”, Rosely Sayão, que sugere alternativas de como a relação entre escola e família pode se tornar mais justa, solidária, democrática e respeitosa para a construção de pessoas que rompam com a ideia de futuro pessoal e lutem por um contexto melhor e possível para todos.
“Eleição também é assunto de criança: Não é necessário um momento solene para conversar com os filhos sobre política: é no cotidiano que isso pode acontecer”.
(Rosely Sayão, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo)
Voltando à escola, para ela, o que as instituições chamam de conteúdo não se trata de conhecimento. “Conteúdo é quantidade, conhecimento é complexidade. Somente pegando um tema e aprofundando, aprofundando, aprofundando que a gente vai levar as crianças a compreenderem o que é metodologia científica, o que é um conhecimento sistematizado. E quando a gente acompanha uma criança, um jovem, num tema, a gente pode ter certeza que ele vai precisar cada vez menos de nós para fazer isso com outros temas ”.
Entendo que, a partir dessa perspectiva, temos presença, temos pensamento e temos autonomia na formação de pessoas inteiras e complexas que vão agir com mais consciência e responsabilidade.
Por fim, entendo que seja importante revermos a relação família, escola e sociedade no desenvolvimento humano, em especial na infância e na adolescência, para construirmos espaços de diálogo e para que tenhamos uma sociedade democrática, inclusiva e mais igualitária. Acredito em uma educação para além do currículo formal de conteúdos, que considere as individualidades, que discuta a vida, a pluralidade da vida, do mundo e das gentes, para um bem-viver coletivo e integrado.
Fica meu convite para compartilhar suas reflexões aqui comigo!
Até o próximo! 🙂
Referências:
Unicef
JusBrasil
Lunetas
UFSM
Politize
Prioridade Absoluta
Tab UOl
Universa UOL
Folha de S. Paulo
O Estado de S. Paulo
TEDx Talks