Sobre as crianças, o tédio e as telas

Escrevo sobre infância e tédio a pedido das pessoas que se encantam com o desenvolvimento infantil, mas que se questionam sobre os sentimentos das nossas crianças e adolescentes diante do modo de vida contemporâneo. Afinal, a era digital traz novas demandas para pais, mães e educadores apoiarem as crianças na infância, essa fase crucial no desenvolvimento humano, marcada por descobertas, aprendizados e crescimento emocional.

Com o avanço da tecnologia, a internet tem se tornado cada vez mais presente na rotina das crianças, oferecendo acesso a uma infinidade de informações e possibilidades. No entanto, já é sabido por diversos estudiosos que o uso excessivo de dispositivos digitais pode afetar negativamente o desenvolvimento infantil. 

Sendo assim, como cuidar para que a infância seja experienciada de forma saudável,  enriquecedora e com equilíbrio entre conexão e desconexão? É sobre isso que gostaria de conversar com vocês hoje, em especial pela chegada das férias, que exige uma nova dinâmica das famílias. Então, siga comigo!

“Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer,
mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada.”

[Fernando Pessoa – Livro do Desassossego]

 

Tem-se falado muito sobre o tédio, sobretudo porque as nossas crianças não sabem lidar com ele! Segundo dicionários da língua portuguesa, tédio significa “sentimento de desgosto, de aborrecimento sem causas aparentes ou aborrecimento que vem em consequência da “mesmice”, a repetição do cotidiano, vida sem novidades, entediante”.

O tédio é um estado emocional comum, que todos experimentamos em algum momento. Embora, geralmente, seja visto como algo negativo, o tédio desempenha um papel importante no desenvolvimento humano, uma vez que ele pode impulsionar a criatividade e a inovação.

Quando estamos entediados, nosso cérebro busca estímulos e atividades para se envolver. Essa busca por novidades pode levar a descobertas criativas e ao desenvolvimento de novas habilidades. Não à toa, muitas invenções e avanços científicos surgiram de momentos de tédio, em que as pessoas procuravam por maneiras de se distrair e de se entreter.

Além disso, o tédio contribui para a vivência de novas experiências e desafios. Quando nos sentimos entediados, é sinal de que estamos insatisfeitos com nossa situação atual e que precisamos de estímulos adicionais para nos sentirmos realizados. Esse desconforto abre janelas para mudanças positivas em nossas vidas, como encontrar novos hobbies, explorar novos ambientes ou estabelecer novas metas. Ou seja, o tédio é capaz de incentivar o movimento, a curiosidade e até mesmo  a nossa capacidade de lidar com a monotonia! 

Daniel Siegel, psiquiatra e neurocientista conhecido por seu trabalho sobre a mente, o cérebro e as relações interpessoais, explora o conceito de “mente plena” e a importância de estar presente e aberto para experiências emocionais, incluindo o tédio. Ele argumenta que a capacidade de tolerar o tédio, e aceitá-lo como uma parte natural da experiência humana pode levar a uma maior resiliência emocional e elevar o bem-estar.

Siegel ainda destaca que o tédio pode ser um estímulo para a criatividade e para a imaginação. Quando as crianças não têm atividades estruturadas ou estímulos externos constantes, elas têm a oportunidade de explorar sua própria mente, descobrir novos interesses e desenvolver habilidades autônomas. O tédio pode funcionar como combustível para que as crianças se permitam novas experiências, experimentem brincadeiras inventivas e aprendam a lidar com a frustração e a falta de recompensa instantânea. Este último, em especial, tão comum em aplicativos de jogos e de redes sociais.

No entanto, na sociedade moderna, muitas vezes há uma ênfase excessiva na tecnologia e em atividades altamente estimulantes. Zygmunt Bauman, um sociólogo polonês conhecido por sua análise crítica da modernidade líquida, argumenta que a tecnologia e o consumismo contribuem para uma cultura de instantaneidade, em que a capacidade de tolerar o tédio diminui. E isso vale para as crianças e para nós, adultos, também.

Na era tecnológica, na qual tudo se encontra a um breve click ou no rolar de imagens frenéticas e, por vezes, vazias; no mundo onde tudo é rápido, possível, descartável, líquido, nossas crianças têm acesso a uma série de estímulos instantâneos e entretenimento virtual, o que pode dificultar a tolerância ao silêncio, ao ‘por vir’ das coisas.

“O cérebro eletrônico faz tudo
Quase tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo”

[Gilberto Gil – Cérebro Eletrônico]

Já se sabe que a falta de vivência do tédio e a superestimulação tendem a resultar em impactos negativos no desenvolvimento infantil. As crianças podem se tornar mais dependentes de estímulos externos e ter dificuldades em se envolver em atividades autônomas. Além disso, a superexposição à tecnologia pode interferir na capacidade de concentração, na interação social e no desenvolvimento da imaginação.

Felizmente, a psicologia tem estudado o papel do tédio na infância e ressaltado a importância de proporcionar experiências enriquecedoras fora do mundo virtual. Não se trata de apartar as crianças do contexto digital, e sim de compreender como inseri-la.

A psicóloga Rosely Sayão destaca a importância de estabelecer limites claros e saudáveis para o uso da internet, a fim de evitar prejuízos emocionais e sociais para as crianças, uma vez que se relacionar no mundo virtual é diferente de conviver na vida real. Em suas reflexões, Rosely argumenta que o tédio não deve ser evitado a todo custo, mas sim usado como uma oportunidade de crescimento e de aprendizado. 

Seguindo o fio de discussões sobre da exposição excessiva à tecnologia e seu impacto na infância, Gabor Maté, renomado médico e psicoterapeuta canadense, reforça a visão de que crianças que vivem conectadas a dispositivos e à internet podem ter prejuízos no desenvolvimento da atenção, do vínculos afetivos e da própria capacidade de lidar com o tédio. 

Esses são alguns dos profissionais que estudo e que têm contribuído para a reflexão sobre o uso da internet na infância. Essas abordagens visam proteger o desenvolvimento infantil, garantindo que as crianças tenham experiências significativas e saudáveis.

“Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.”

[Manoel de Barros]

Nessa trama da vida infantil, é importante equilibrar o tempo de tela e as atividades estruturadas com momentos de tédio e de tempo livre. Permitir que as crianças enfrentem o tédio de maneira construtiva pode encorajá-las no desenvolvimento de habilidades cognitivas, emocionais e sociais essenciais. Para isso, é fundamental criar um ambiente que valorize a imaginação, a criatividade e a exploração de forma independente, assim, as crianças poderão se desenvolver plenamente em um mundo cada vez mais conectado e estimulante.

Outra maneira de proporcionar experiências significativas no mundo offline é por meio do contato com a natureza. A querida Maria Isabel Amando de Barros contribui para essa conversa, apresentando alguns dos impactos positivos da interação criança-natureza. Veja só!

  1. Bem-estar emocional: A natureza oferece um ambiente tranquilo e relaxante, que pode ajudar a reduzir o estresse e a ansiedade nas crianças. Ela promove uma sensação de calma, de conexão e de equilíbrio emocional. Além disso, a exposição à natureza está associada a uma melhoria no humor e na felicidade das crianças.

 

  1.   Desenvolvimento físico: Brincar ao ar livre permite que as crianças se envolvam em atividades físicas, como correr, pular, escalar e explorar. Isso contribui para o desenvolvimento motor, a força muscular, a coordenação motora e a saúde geral das crianças.

 

  1.   Estimulação sensorial: A natureza oferece uma variedade de estímulos sensoriais, como a textura das folhas, o som dos pássaros, o cheiro das flores e a sensação do sol na pele. Essa estimulação sensorial rica promove o desenvolvimento dos sentidos e a percepção do mundo ao redor.

 

  1. Criatividade e imaginação: A natureza proporciona um ambiente favorável para que as crianças possam explorar livremente, fazer descobertas, inventar jogos e histórias, estimulando, assim, sua capacidade criativa.

 

  1.   Aprendizado e cognição: Estudos têm demonstrado que a exposição à natureza está associada a um melhor desempenho acadêmico e habilidades cognitivas nas crianças. A natureza apresenta oportunidades de aprendizado autêntico, nos quais as crianças podem observar, fazer perguntas, experimentar e aprender sobre o mundo natural.

 

  1. Conexão com o meio ambiente: A exposição à natureza desde a infância promove a formação de um vínculo positivo e uma conexão emocional com o meio ambiente. Isso pode levar a uma maior conscientização ambiental e a um comportamento mais sustentável no futuro.

 

É inegável que a nossa vida está se tornando cada vez mais digital, no entanto, quando pensamos no desenvolvimento infantil, é importante que pais e mães se questionem sobre os caminhos para conectar as crianças à tecnologia. É sobre entender que haverá espaço para a descoberta do mundo virtual, mas sem que isso signifique abrir mão das experiências humanas, sensoriais, afetivas e criativas que habitam o mundo real e que são tão essenciais à infância. 

Então, com as férias que chegaram, que tal deixar as telas um pouco de lado para que o tédio e a criatividade aflorem nas crianças? Espero que o artigo tenha te ajudado e sigo por aqui para conversar sobre os desafios e as possibilidades da infância!

Abraços e até a próxima!

Carol Freire

“Quem me chamou
Quem vai querer voltar pro ninho
E redescobrir seu lugar
Pra retornar
E enfrentar o dia-a-dia
Reaprender a sonhar”

 [Maria Bethania – Brincar de viver]

Fontes:

https://www.cartacapital.com.br/educacao/rosely-sayao-educar-e-apresentar-a-vida-e-nao-dizer-como-viver/
https://www.estadao.com.br/educacao/rosely-sayao/voce-quer-que-seu-filho-corra-riscos/
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/30/cultura/1451504427_675885.html
Gabor Maté – https://drgabormate.com/
Daniel Siegel – O cérebro da criança
Maria Isabel Amando de Barros  – https://criancaenatureza.org.br/pt/