“Na roda do mundo
lá vai o menino,
rodando e cantando
seu canto de infância.”
Thiago de Mello
Como sabem, amo falar, estudar e pensar sobre desenvolvimento infantil, pois acredito que a criança cresce no agora e se desenvolve no hoje. O tempo para bebês e crianças é o instante que se vive. Passado e futuro são invenções, abstrações, que não dão conta da materialidade, da corporalidade e dos movimentos da infância. Nos pequenos, a energia está no corpo e toda concentração nos desafios do presente. A habilidade com as mãos, o olhar, os movimentos de sentar, buscar o brinquedo, engatinhar e andar. Para cada descoberta e nova habilidade, o tempo preciso e precioso.
Desse modo, falar sobre o desenvolvimento infantil na contemporaneidade é falar sobre os desafios do próprio tempo, da necessidade de nós, adultos, de acelerarmos as coisas da vida e de estabelecermos padrões a partir de experiências particulares. Meu convite neste artigo é que pensemos juntas e juntos sobre o desenvolvimento infantil sob uma perspectiva que foge das expectativas apriorísticas e que foca no ritmo natural de cada criança. Vamos tratar do desenvolvimento infantil enquanto um fluxo de desenvolvimento humano potente e autêntico. Vamos comigo?
A infância na contemporaneidade
“Veja só, veja só, veja só, veja só
Mas como o pensar infantil fascina
De dar inveja, ele é puro, que nem Obatalá
A gente chora ao nascer, quer se afastar de Alla”
Emicida – Amoras
Para começar nossa conversa aqui, acredito que seja importante contextualizarmos a infância no momento que vivemos hoje. Olhar para o indivíduo que se forma é olhar também para a sua volta, seu entorno e os elementos que compõem seu tempo histórico.
Por isso, abro este artigo com a visão da psicologia do desenvolvimento que abarca as questões biológicas, sociais, históricas e políticas e que são muito bem-vindas na compreensão da infância, já que enxerga a criança como um elemento da sociedade, como um ser “em-contexto”.
Desse modo, ao longo da história, podemos observar, no Brasil, que as crianças sempre foram alvo de uma política higienista, ou seja, de uma política relacionada à infância que buscava docilizar os corpos, corrigir comportamentos indesejados colocar em risco padrões que se convencionaram chamar “fora de normal”.
Mas o que é ser uma criança normal? Quais comportamentos são esperados? Estas são perguntas importantes, pois, vejam só, para mim, estabelecer padrões é excluir infinitas possibilidades de existência.
Chegando a era da hiperinformação, na qual o imediatismo impera, temos, além dessa expectativa sobre determinados comportamentos, a antecipação das conquistas e habilidades na infância. A rapidez com que circulam as informações se desloca para o desenvolvimento humano que é cobrado adiantado.
Com isso, o fluxo de desenvolvimento de bebês e crianças é atropelado. Tudo é projetado à frente e comparado ao de antes. Lembra que comecei este artigo falando sobre o tempo dos pequenos? Pois é, na antecipação, são ignoradas sua potência em explorar, suas descobertas das minúcias e seu movimento de vir a ser. Só interessa o que já é (ou não é).
Bem, é a partir deste atropelamento que se chega direto às patologias, para o diagnóstico, parte-se direto para a desordem. É sobre essa abordagem que desconhece a criança em desenvolvimento que falarei a seguir. Continue comigo.
Patologização e como fica o desenvolvimento infantil?
Antes das reflexões que gostaria de levantar neste tópico, vamos voltar um pouquinho na história da humanidade. Entre os anos 40 e 80, no Brasil, a política higienista foi responsável pelo encarceramento de crianças nas Fundações de Menores. Hoje, podemos observar essa dulcificação – esse anestesiamento – por meio de medicamentos psicotrópicos (Fórum Sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, 2013).
Tenho percebido ao longo das minhas experiências profissionais, em meus trabalhos de orientação e supervisão, que muitos profissionais têm buscando compreender as “dificuldades das crianças” ou os “transtornos da infância”, mas sem antes terem um conhecimento do que é primordial, sobre quem é a criança em seu fluxo de desenvolvimento, sobre o que é parte de cada idade e sobre o que é cultural. Há, ao meu ver, um distanciamento do ser e uma aproximação ao resolver.
Encontrar um fim, estabelecer um nome, prescrever uma solução. O desenvolvimento infantil na atualidade – e inserido na sociedade contemporânea – é vítima de uma crescente medicalização. Diante da premissa da falta, da patologia, da inadequação, nos vemos perante altos índices de prescrição medicamentosa para crianças e adolescentes e de uma infindável e disputada lista de transtornos do desenvolvimento infanto-juvenil.
Aproveito para destacar que, ao falar em medicalização, me refiro a todo processo baseado na lógica que busca causas exclusivamente orgânicas para questões de diferentes naturezas, deslocando a criança do contexto socioeconômico-político no qual ela se encontra. Todo o entorno é ignorado, todas as experiências vividas são ignoradas, o foco é apenas no biológico. Ao excluir todas as variantes externas, resumimos um ser humano social e complexo somente ao seu corpo físico e sabemos que há muito mais camadas que esta.
Mente e corpo e o olhar integrado para o desenvolvimento infantil – possibilidade de uma articulação entre Reich, Lowen e Pikler
Agora, como ferramentas para nosso pensar em relação ao desenvolvimento infantil de modo integrado, entre corpo, mente e sociedade, compartilho aqui um pouco das teorias e modos de enxergar o ser humano de três estudiosos referências no tema: Wilhelm Reich, psiquiatra e psicanalista austríaco; Alexander Lowen, psicanalista americano, desenvolvedor da psicoterapia bioenergética; e Emmi Pikler, pediatra húngara.
Ao me debruçar sobre os escritos de Reich, Lowen e Pikler, pude notar que há uma convergência na ideia sobre a importância de se olhar para o bebê e para a criança como um ser capaz, competente, que precisa vivenciar a liberdade de movimentos e fazer as descobertas por si próprios, no ritmo e no tempo também próprios.
Oferecer um espaço seguro e favorável é o que os adultos devem fazer para colaborar com o fluxo natural do desenvolvimento infantil. A intervenção nas brincadeiras e o ato de “dar uma forcinha” para o bebê rolar ou virar, por exemplo, podem atrapalhar e até mesmo prejudicar nesse processo de vir a ser dos pequenos.
“Tentar ensinar a uma criança algo que pode aprender por ela mesma, não apenas é inútil. Também é prejudicial.”
Emmi Pikler
Compreender que o bebê nasce com uma tendência inata ao desenvolvimento e conhecer o bebê em seu fluxo natural é fundamental para permitir que ele se construa – no seu tempo – como indivíduo, conquistando novas posturas e ganhando o sentimento de confiança e competência.
Desse modo, Reich aponta que muitos educadores demonstram um total desconhecimento das condições biopsicossociais das crianças e consideram que devem intervir nas atividades, ainda que impondo frustrações desnecessárias, sob a lógica de estarem agindo pelo bem da criança.
Para Reich havia também uma angústia recorrente de muitos pais e educadores de adultizar as crianças (não sente desse jeito, isso está errado, você não consegue assim, etc). Nos dias de hoje, podemos incluir ainda aquela questão do imediatismo e da antecipação de comportamentos que comentei anteriormente.
A consequência dessas ações é negativa para a criança, pois gera um sentimento de inadequação e frustração, acarretando bloqueios desde a primeira infância.
Para os três autores, o corpo é ponto de partida para as descobertas da vida. A mão para o bebê é o mundo em certo momento de seu desenvolvimento. Permitir e assegurar que bebês e crianças tenham condições de vivenciar seu próprio crescimento, estabelecendo um vínculo de afeto, confiança e respeito é o papel do adulto – de pais, mães, educadores, cuidadores.
“A vida em si é um processo de desenvolvimento
que se inicia com o crescimento do corpo e de
seus órgãos, passando pelo desenvolvimento de
atividades motoras, pela aquisição do
conhecimento, pela extensão dos
relacionamentos, e terminando num resumo da
experiência que denominamos saber.”
Lowen
Depois dessas abordagens e referências, gostaria de deixar a reflexão sobre como podemos compreender melhor o bebê e a criança em desenvolvimento, observar suas potências e descobertas, conhecer o que é parte de cada idade, o que é cultural e não saltar direto para as patologias.
Meu convite é para que possamos, primeiro, entender o desenvolvimento infantil como forma de possibilidade de uma vida plena, por meio de uma educação que promova o exercício da liberdade e autenticidade, da pulsação vital e natural do fluxo de desenvolvimento humano. Para que possamos entender, o que é da ordem própria da infância e da cultura para, depois, colocarmos a lupa sobre aquilo que possa nos estranhar.
O pulsar da vida está no abraçar das nuances, no aproximar das possibilidades, no compreender o outro em suas solturas e nervuras – em sua totalidade – sem jamais encerrá-lo.
“Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.”
Fernando Pessoa
Espero que tenham gostado da nossa conversa por aqui e até a próxima!
Fontes:
Conversando sobre o desenvolvimento infantil: contribuições da Análise Bioenergética
(https://novo.carolinafreire.com.br/wp-content/uploads/2021/02/Monografia-CarolinaFreireG7finalAcorridoFINAL-1.pdf )