A invenção da infância: educação, direitos e afetos

“Como a explosão duma supernova ou a eclosão de uma semente, toda a gente nasce criança”

Texto de apresentação da terceira edição da revista de poesia Gratuita
 (Edições Chão da Feira), dedicada à infância.

Nenhuma sumaúma nasce gigante. Toda árvore, por mais imensa que seja, tem seu início pequena. Brota e cresce do germinar de uma semente. Com a gente é a mesma coisa. O começo de todo ser é miúdo, não há como ser grande, sem primeiro ser criança. E é pela e para a infância que resolvi escrever este artigo e compartilhar com vocês algumas questões que permeiam – ou deveriam permear – os primeiros anos de vida das pessoas. 

A educação, os direitos, as políticas públicas, a medicalização, os afetos, a família e as redes de apoio sociais atravessam a primeira infância e são terra, água e ar que vão dando forma ao desenvolvimento humano. Estes insumos, no entanto, devem ser oferecidos com dignidade e qualidade para que o crescimento seja sadio e alegre. Ignorar o fato de que os pequenos são afetados por esses atravessamentos é ignorar o fato de que as crianças são gentes. Partindo então desse olhar que presta atenção às crianças enquanto pessoas, te convido a seguir com a leitura!

O que é a infância?

Para começar nossa conversa sobre infância, vou partir das definições que o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, Michaelis, nos apresenta: 

in·fân·ci·a

sf

1 Período da vida, no ser humano, que vai desde o nascimento até o início da adolescência; meninice, puerícia.
2 As crianças em geral.
3 Primeiro período da existência de uma sociedade ou de uma instituição.
4 O começo da existência de alguma coisa.
5 Estado de espírito em que não há malícia; credulidade, ingenuidade, inocência.

Os verbetes do dicionário associam palavras à infância e colocam os possíveis significados, inclusive os figurados, para a palavra infância. No entanto, acredito que os limites da linguagem devam ser extrapolados quando queremos falar sobre a infância. E a primeira barreira a ser rompida é a de que existe uma forma única, um padrão, um modelo de ser criança a ser seguido. Podemos falar em infâncias, no plural, para dar conta de abarcar as muitas e diversas realidades, contextos e culturas nas quais as pessoas pequenas estão inseridas. 

Para mim, o entendimento de que há muitos jeitos de ser criança e que há uma individualidade, uma particularidade em cada uma, é o primeiro passo no caminho do respeito e do acolhimento na primeira infância. Sem dúvidas, as infâncias partem do início, do período de construção de um ser humano, mas cada início tem seu modo de ser, de agir e tatear o mundo para descobri-lo. 

Respeitar e compreender cada criança como um ser com vontades e desejos e necessidades únicas é possibilitar o desenvolvimento de uma pessoa com identidade, autonomia e integrada a si.

Direitos e política públicas na primeira infância

“Que as coisas continuem como antes: eis a catástrofe.’ A infância é promessa de começo, testemunho do eterno retorno do novo e, portanto, de adiamento da catástrofe. Talvez seja por isto que todo poder conservador busque domesticar a infância: para manter um estado de coisas é preciso, injustamente, conter o indeterminado. Todavia, isto não é senão um modo grotesco de fracassar. Sejam quais forem as forças, a infância resiste: condição e promessa do vivo, ela afirma a persistência inegociável da mutação.”

Walter Benjamin

Crianças são pessoas e pessoas devem ter seus direitos garantidos e defendidos. Parece bastante óbvio, mas sabemos que na prática não é o que ocorre, infelizmente. O final do século passado foi um divisor de águas no reconhecimento de direitos, tanto no plano internacional como no Brasil, após os anos de ditaduras e governos militares. 

Neste período, tivemos a Convenção sobre os Direitos da Criança (1990), elaborada no âmbito da ONU, da qual o Brasil é um dos signatários, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA], que são documentos reconhecidos como importantes marcos no processo de construção da cidadania das crianças e adolescentes. 

Além dessas conquistas tiveram continuidade nesse início de século, no que se refere à primeira infância, temos a inclusão da educação infantil no Sistema Nacional de Educação Básica e os marcos institucionais: Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil e inclusão da educação infantil no Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). Ainda em relação aos direitos dessa fase da vida, houve avanços com o Plano Nacional pela Primeira Infância (PNPI) e, finalmente, com o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016). 

As leis, os marcos, as intenções com que são elaborados são fundamentais. No entanto, é evidente que há um vão imenso entre ideia e ação. O que testemunhamos, diariamente, no Brasil, sobretudo nos últimos anos sob um governo que negligência a vida, são gestos vão no sentido contrário e que violam os direitos voltados à primeira infância. A ausência do Estado e de políticas públicas em relação às pessoas pequenas, inevitavelmente, deixam suas tristes marcas.

Por isso, aqui, ressalto que é indispensável que as diferentes organizações da sociedade civil: Poder Judiciário, entidades governamentais, educadores, representantes da academia e família estejam, de fato, alinhados e atentos na defesa dos direitos das crianças para que as palavras passem do papel para a prática.

Infâncias em (mais) risco 

Ainda falando sobre direitos e proteção na infância, compartilho agora dados que mostram que, em um País racista e preconceituoso, no qual classe e raça são determinantes sociais, algumas crianças são mais expostas e ficam mais vulneráveis à violência e ao desamparo. 

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, crianças e adolescentes vítimas da violência letal são majoritariamente negros: 63% das crianças de 0 a 9 anos e 81% dos adolescentes de 15 a 19 anos. Entre os anos de 2017 e 2021, 35 mil crianças e adolescentes foram vítimas de mortes violentas. Desse total, 86% das mortes, entre pessoas entre 10 e 19 anos, ocorreram por armas de fogo. 

Entre 2017 e 2019, o Estado brasileiro, matou ao menos 2.215 crianças e adolescentes, revelando um sistema de segurança e justiça marcado pela seleção no ato da repressão criminal. Levantamento do Unicef e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que, em 2020, nos 24 estados em que há dados (exceções são BA, DF e GO), um total de 787 mortes de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos foram identificadas como mortes decorrentes de intervenção policial. 

De acordo com o estudo “Violência armada e racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade social”, realizado pelo Instituto Sou da Paz, crianças e adolescentes negras de até 14 anos morrem 3,6 vezes mais por armas de fogo do que crianças brancas.

Sabemos que o dever constitucional do Estado é proteger, com absoluta prioridade, crianças e adolescentes. Mas sabemos e assistimos repetidamente o quanto esse dever tem sido descumprido e ignorado. Me pergunto, então, como germina uma semente, como brota uma muda, como cresce uma árvore diante de tantas intempéries, violências e ausências?

A educação e os afetos na primeira infância 

Chego aqui com alguma resposta para a pergunta acima. É preciso sol, chuva, terra, adubo para a semente virar árvore. É preciso cuidado, amor e dedicação. Um caminho, um direito, uma necessidade básica é a educação. Mas, vejam bem, a educação que compartilho é aquela que extrapola a grade curricular, que olha para o ser e suas questões psíquicas, emocionais, e que não limita, rotula ou faz uso de fórmulas prontas. Resgatando o que disse no início deste artigo, é preciso, urgentemente, compreender as crianças como pessoas tecidas de singularidades e particularidades. 

A educação que defendo possibilita que as nuances de cada ser sejam acolhidas no coletivo. A educação permite o desabrochar de cada semente, oferecendo os insumos e estimulando o desenvolvimento integral de cada ser. Neste sentido, trago a citação de  Zoia Prestes, no capítulo, “A teoria histórico-cultural, a ciência e a medicalização na educação”, presente no livro-seminário “Desver o mundo perturbar os sentidos”. 

Ela diz que “como professora e educadora, acredito na força da educação, e, como todo “processo de educação é um processo psicológico” (VIGOTSKI, 2003, p. 41), a educação precisa se ocupar precisamente do desenvolvimento humano, do desenvolvimento das funções psíquicas superiores do ser humano, ou seja, das funções psíquicas culturais que emergem no processo de humanização, na convivência, no coletivo, enfim, nas relações sociais.” 

Incluo também as pessoas que são responsáveis pelo cuidado das crianças. A educação está também fora do muro das escolas e é preciso que as famílias, principalmente as mais vulneráveis socialmente, tenham garantias, condições e acesso às necessidades fundamentais à primeira infância para que possam, no convívio, na troca, contribuir para o desenvolvimento humano saudável e respeitoso. Novamente, o Estado e as instituições governamentais têm deixado uma lacuna ao não prover o básico. 

Medicalização e patologização da infância 

Bem, seguindo com as questões que atravessam as infâncias, chego a um tema que tenho debatido com bastante ênfase ultimamente: a medicalização e a patologização da infância. Dentro daquela ideia de homogeneização das crianças, na qual há um padrão comportamental esperado e definido do que é ser criança, todo e qualquer modo que se manifeste desviante desse padrão é considerado impróprio e carece de correção, de tratamento e cura.  

Apenas para uma breve contextualização histórica, entre os anos 40 e 80, no Brasil, a política higienista foi responsável pelo encarceramento de crianças nas Fundações de Menores. Hoje, essa dulcificação – esse anestesiamento que busca sanar comportamentos considerados “fora do normal” –  é feita por meio de medicamentos psicotrópicos (Fórum Sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, 2013). 

Desse modo, ao longo das minhas experiências profissionais, tenho notado que há uma busca por compreender os “transtornos da infância”, mas sem antes ter um conhecimento primordial, sobre quem é aquela criança em seu fluxo de desenvolvimento, sobre o que é parte de cada idade e sobre o que é cultural. Como citei em outro artigo aqui do blog, ao meu ver, há um distanciamento do ser e uma aproximação ao resolver. 

As infâncias têm sido associadas a patologias e essa relação sem profundidade acaba por  banalizar tanto a infância quanto a doença. A criança é um ser de movimento, de expansão e de recolhimento. Ela se desenvolve a partir da curiosidade em descobrir o mundo o experimentando. Mas o que vemos atualmente é o desenvolvimento infantil sendo vítima de uma crescente medicalização. 

No entanto, destaco aqui que, ao falar em medicalização, faço referência ao processo baseado na lógica que busca causas unicamente orgânicas para questões de diferentes naturezas, deslocando a criança do contexto socioeconômico-político no qual ela se encontra.

Volto a Zoia Prestes que diz que “estamos educando cada vez mais valendo-nos da ciência para atender a um certo padrão de formação de seres humanos: obedientes às demandas de um sistema que pretende a manutenção e o aprofundamento das desigualdades sociais. A educação medicalizada está, sem dúvida, a serviço desse projeto de ajustamento, “a pílula mágica” se apoia na ciência para ditar normas e regras, para atender a um currículo, ou seja, a ciência está na liderança, enquanto a educação é que deveria ditar tarefas.”

Há um enquadramento da infância, pois a infância é também uma questão política.

Infância e o brincar livre 

Para finalizar minhas reflexões sobre a primeira infância e sua (re) invenção, falo do brincar livre. Neste espaço-tempo da infância, o brincar é comunicar, é apreender a realidade e agir nela. A criança que brinca livre é protagonista de seu crescimento e de suas descobertas. Ela atua, não é figurante. 

A pedagoga e consultora de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana, Ana Cláudia Leite, destaca que “por mais que sociedades e culturas se modifiquem, e que existam muitos jeitos de ser criança, imersas em diferentes contextos, há um elemento comum que sustenta uma universalidade nas infâncias: o brincar livre. Afinal, se tem algo que as crianças não fazem é brincar por obrigação.”

É esta liberdade no agir que permite que as crianças se expressem com potência e de forma genuína, tendo o corpo como principal meio para elaboração do conhecimento. O brincar livre é, para a criança, coisa séria e um recurso primordial para se entender como pessoa no mundo. A brincadeira é também adubo para o desenvolvimento humano e para a semente miúda virar samauma.

Bem, falar sobre infância é sempre uma alegria e eu poderia seguir tecendo as palavras por páginas e páginas, mas vou encerrando este artigo e deixo o espaço aberto para quem quiser compartilhar suas reflexões sobre o olhar para gente pequena. Adoro dialogar!
Até o próximo!

 

Referências:
Nexo Jornal 

Livro Seminário “Desver o Mundo”
Livro “Prioridade Absoluta
Portal Lunetas