Mulheres e empreendedorismo: possibilidade de emancipação ou o espaço que nos cabe?

Eu tenho pressa e eu quero ir pra rua
Quero ganhar a luta que eu travei
Eu quero andar pelo mundo afora
Vestida de brilho e flor
Mulher, a culpa que tu carrega não é tua
Divide o fardo comigo dessa vez
Que eu quero fazer poesia pelo corpo
E afrontar as leis que o homem criou pra dizer

[Ekena – Todxs Putxs]

Nós, mulheres, na pluralidade de nossas existências, não nos cansamos de nos movimentar na busca por nós mesmas. É como se, de alguma forma, estivéssemos “fora” ou com “algo faltando”. Basta reparar nas frases que ouvimos ao longo da vida: “isso não é coisa de menina”, “feche as pernas”, “se comporte como uma mocinha” ou “quando vai se casar? E ser mãe?”. Entre tantas expectativas e enquadramentos, a nossa subjetividade é, invariavelmente, assaltada.  

Não é à toa que muitas de nós se identificam com a “síndrome da impostora” (aqui tem um artigo que escrevi sobre o tema), porque não sabemos quem somos e, portanto, a todo momento duvidamos de quem somos. Como diz a psicóloga Valeska Zanello, as mulheres são ensinadas a priorizar necessidades alheias, a amar homens; eles, por sua vez, recebem aval para se colocarem em primeiro lugar e amar outras tantas coisas. Por fim, crescemos sem nos autorizar, sem validar nossos desejos e nossas ambições. 

Esperam de nós a função do cuidado, da maternidade, da esposa que abre mão de seus projetos por um casamento. Assim, seja no espaço público ou privado, os papéis de gênero designados às mulheres minguam as nossas possibilidades de escolha e de autonomia para a construção de narrativas mais autênticas e coloridas.

Essa é a ponta do iceberg para questões enraizadas em nossa sociedade desigual e patriarcal. Mas é também um ponto de partida para entendermos os desafios que as mulheres enfrentam em suas jornadas pessoais e profissionais, nas camadas socioeconômicas e em camadas particulares. São nessas intersecções que reside minha análise de hoje, sobre as faces do empreendedorismo feminino e sua relação com o poder.

Continue comigo para se aprofundar no debate.

Afinal, o que querem as mulheres?

Considerando os obstáculos acima que impedem o reconhecimento de quem somos, coloco aqui essa pergunta, cunhada pelo psicanalista Freud e já transformada em seriado de TV e diversos memes e esquetes dramatúrgicas, que tem em seu bojo uma crítica e também uma oportunidade.

A crítica parte do viés machista que, de prontidão, nos define os lugares e as formas de existir. Ao analisar por esta ótica, o que ecoa da questão é que as mulheres estão sempre insatisfeitas, reclamando de suas realidades e caminhos. É como se o querer feminino fosse um ultraje a esta estrutura social já estabelecida, na qual homens detêm o poder e o lugar do não-julgamento. 

Embora haja muitas e profundas mudanças para acontecer, reconheço que existe um sinal positivo vindo de muitos homens em romper com este pacto estabelecido, em ampliar o olhar para sua forma de estar no mundo e em descobrir como podem ser agentes de uma nova dinâmica. Em meus atendimentos tenho vivenciado isso e acredito, como bell hooks, que o entendimento e a construção do feminismo representa melhores vidas para todos, para todos os gêneros. 

Voltando à pergunta, vejo que pela perspectiva da oportunidade, ela pode nos conduzir a uma investigação de nossas mais genuínas vontades e as mais diversas possibilidades de ser e estar. A questão se torna, então, um convite para libertar e chacoalhar uma cultura fundada no poder masculino.

No mercado de trabalho, o que as mulheres querem e podem importa?

No terreno profissional, as opressões de gênero, ainda mais violentas quando interseccionadas ao pertencimento a outros grupos minorizados (raça, orientação sexual, pessoa com deficiência, entre outros), são reproduzidas e ganham novos contornos ao determinar onde e como devemos estar presentes.

Lembrei de uma matéria do New York Times que se chama “A hora entre o bebê e a bruxa” e ilustra bem as barreiras para o crescimento das mulheres no ambiente corporativo. O artigo argumenta que as mulheres têm uma pequena brecha para serem reconhecidas e valorizadas em suas carreiras – dos 18 aos 30, são jovens demais para serem levadas a sério; entre 30 e 40 estão na idade de maternar, e as que se tornam mães são automaticamente colocadas à margem de qualquer ambição profissional; após os 50, são velhas demais para crescer e se destacar.

“A percepção do inconciliável (“ou isso ou aquilo”) e o discurso da culpa feminina, internalizada pelas mulheres em sua socialização, emergem
no contexto da construção social do sujeito. Nesta perspectiva, a mulher contemporânea ou é culpada por trabalhar ou é culpada por deixar de fazê-lo para se dedicar ao lar e à família.”¹

Eva G. Jonathan

Além do preconceito etário, a maternidade sempre foi uma muralha para a vida profissional das mulheres. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas mostra que 24 meses após terem filhos, quase metade das mulheres que tiram a licença-maternidade ficam sem emprego. Em um recorte por escolaridade, a queda no emprego chega a 51% para mulheres com nível inferior de estudo; enquanto para as que têm um nível mais alto, o índice fica em 35%.

Quando pensamos em espaços de decisão, a presença feminina em cargos de liderança nas organizações se tornou uma pauta mais debatida e cobrada, no entanto, ainda é um assunto no qual as empresas patinam. Embora o percentual venha aumentando nos últimos anos, a pesquisa da Grant Thornton aponta uma ligeira queda de 39% para 38%, de 2021 para 2022,  na ocupação de mulheres nessas posições.

Sem um ambiente desenhado para incluir mulheres, pouco acolhedor para mães e ainda hostil para as lideranças femininas, o empreendedorismo se apresenta como uma via que permite exercer mais poder sobre nossas escolhas e decisões, e à frente de um negócio, mulheres pretendem alcançar independência financeira conciliada com outras demandas que, geralmente, exigem uma vida multitarefa.

Empreender e ser mulher

No mundo contemporâneo, o empreendedorismo feminino pode assumir faces distintas. Segundo Anderson e Woodcock (1996), os motivos que levam mulheres a ter um negócio giram em torno de “sobrevivência, insatisfação com a liderança masculina, descoberta de um nicho de mercado, satisfação em fazer as próprias decisões, percepção do desafio que, em combinação com o prazer e o contentamento aí associados, constitui o fator principal.” 

Em um país extremamente desigual, o primeiro motivador citado – a sobrevivência – tem muita representatividade. Durante a pandemia, as mulheres foram as que mais deixaram postos de trabalho, em um momento em que se intensificaram as responsabilidades de cuidado – casa, filhos etc. – papel historicamente atribuído às mulheres. Foi neste período também que houve um pico de empresas abertas por elas – o salto foi de 41% em 2020. 

Em uma análise racial, mulheres negras empreendem por necessidade, de modo que não é, em si, uma escolha, um sonho ou a identificação de uma oportunidade de inovar. A realidade se impõe ante a qualquer desejo ou vocação. Essas mulheres são 28% da população; 60% delas são empreendedoras por sobrevivência; e 15% começaram seu próprio negócio depois da pandemia, justamente por perderem seus empregos ou terem a renda reduzida.

Acompanhando mulheres há 20 anos, cada vez mais ouço e presencio histórias de mulheres investem em negócios próprios também por não se identificarem com o mercado de trabalho que, por vezes, é machista e excludente, ou por entenderem ser a única alternativa que cabe na vida após a maternidade ou como possibilidade de alguma emancipação financeira ao término de um casamento. 

Desse modo, o empreendedorismo funciona como um recurso para que possam conciliar renda, atribuições domésticas e da maternidade, ou como saída de uma relação abusiva ou violenta. Neste último caso, os dados evidenciam: de acordo com a pesquisa do  Instituto Rede Mulher Empreendedora (IRME), 81% das mulheres empreendedoras acreditam que têm mais autonomia de vida e, portanto, são mais independentes de suas relações conjugais. Das entrevistadas, 34% sofreram algum tipo de agressão na relação com cônjuge e 48% destas afirmaram que conseguiram sair desses relacionamentos após empreender.

O ideal de empreender para encontrar liberdade e poder de decisão é algo que deveria ser uma realidade possível e tangível para as mulheres. Mas isso partiria do pressuposto de que há escolha, há opções na mesa e há espaços para além desse como possibilidades de ocupação digna e em pé de igualdade. Empreender seria, assim, mais uma das formas de viver, de experimentar, de explorar e de potencializar a si no mundo.

“O espectro da Mulher Selvagem ainda nos espreita de dia e de noite. Não importa onde estejamos, a sombra que corre atrás de nós tem decididamente quatro patas.” 

Clarissa Pinkola Estés

Sendo assim, a questão que levanto aqui é que, embora o empreendedorismo ofereça uma possibilidade de autonomia e independência, se tornando um aliado para muitas mulheres que precisam de ferramentas para não aceitar submissão em relações afetivas ou profissionais, não podemos deixar de ter um olhar crítico para as condições e as rotas que mulheres tomam para empreender. É preciso questionar: em qual espaço-tempo mulheres não estão à mercê de decisões ou restrições impostas a elas, seja pela idade, situação familiar, classe social etc.? Quando podem se apropriar das decisões sobre suas vidas sem serem criticadas – e condenadas – por isso? Onde podem pertencer e alcançar posições de poder em organizações e no âmbito público?

Essas questões são propositalmente deixadas como interrogações, pois a discussão não se encerra aqui. É preciso que as perguntas gerem eco, mesmo que se tornem ensurdecedoras. O cerceamento da mulher, seja no campo pessoal, seja no campo profissional, precisa ser derrubado, para que haja liberdade em sua existência. Por fim, ainda que o trabalho seja um lugar possível de emancipação, ele só o será, de fato, quando oferecer condições estruturais e legais de igualdade em direitos entre as profissionais e os profissionais. Sem isso, dentro de uma corporação ou com seu próprio negócio, seguiremos confinadas ao espaço que nos fizeram caber.

Me diga o que acha e compartilhe das suas experiências!

Até o próximo!

 

Fonte:

¹Mulheres empreendedoras: o desafio da escolha do empreendedorismo e o exercício do poder. Jonathan, Eva G.